Digicrônicas

Carnaval… sem idade nem tempo…

Por: Cristina Vergnano

Eram 14 horas do sábado de carnaval. Na esquina de uma rua movimentada do bairro da Tijuca, pessoas se aglomeravam, animadas, com ou sem fantasias, esperando o momento de o bloco começar a movimentar-se pela região. Só para aquecer, a percussão começou a tocar e os puxadores trouxeram, às gargantas e às memórias, antigas marchinhas cariocas dos tempos áureos do carnaval da cidade.

Os mais velhos cantavam, alguns timidamente, outros com desavergonhada animação. Os jovenzinhos e as crianças, olhavam em volta e tentavam acompanhar, nem que fosse apenas dançando e cantarolando “larararás”.

Uma menininha, fantasiada de Mulher Maravilha, parou perplexa, fixando um ponto determinado na calçada próxima a ela. Sua mãe e seu pai, ambos vestidos de um tipo de pirata estilizado, perceberam, de repente, a atitude da filhinha. Abaixaram um pouco, algo surpresos, pois havia muita agitação e sua menina não era exatamente calminha, e perguntaram o que estava acontecendo. O ruído já era grande, por isso, tiveram que repetir as perguntas. “Houve algo, Dedé?! Por que está tão parada? Viu alguma coisa que assustou você?”

Começaram a manifestar certa preocupação. “Sabe-se lá… Nessas aglomerações carnavalescas não era impossível haver algum pervertido fazendo das suas, ou alguém que houvesse bebido demais e estivesse passando dos limites… Também podia ser um ladrão… Quem poderia dizer?!?! O Rio andava tão perigoso!!!!…” – iam pensando, dando asas às suas imaginações férteis e contaminadas dos medos cotidianos.

Na verdade, tudo aquilo poderia ser verdade, mas o ambiente ali estava bem tranquilo e familiar. Exatamente o oposto do caminho de tais conjecturas.

Deram uma sacudidela carinhosa na menina e voltaram a perguntar. Ela então, saiu do seu “transe”, sacudiu a cabecinha e respondeu entre perplexa e surpresa:

– Assustou?!?! Que nada!!!! Mas olhem lá que gozado…

– Onde? O quê? – perguntaram ambos a uma só voz.

– Ali, naquele cantinho da calçada. Aquela vovó de cabecinha branca… Ela está toda feliz, sorrindo e cantando, como se tivesse a minha idade! E ela deve ter muuuuiiiiitos aninhos! É toda enrugadinha e meio curvada.

Os pais se olharam, voltaram os rostos para o lugar para onde apontava a filha… De fato, viram uma senhora miúda (bem senhora!), com a cabeça branquinha como algodão, apoiada numa bengala, com um colar florido de havaiana no pescoço delgado, sobre a roupa sóbria, mas leve e alegre. Ela cantava animadamente todas as marchinhas que puxavam ao microfone. Sacudia ritmada, mas de forma discreta, o braço livre da bengala, dando uns passinhos para frente e para trás. Parecia totalmente feliz e integrada ao evento.

– Quero falar com ela! – disse, então, de supetão, a garotinha.

Os pais tentaram argumentar que não era educado apontar e fazer comentários e observações sobre os outros. Que estavam ali para curtir a festa. Que não conheciam a senhora e não queriam incomodá-la. A filha, insistente, retrucou que se não conheciam, bastava falar com ela para conhecer. E que ela parecia tão contente e sabia todas as músicas… Não ia se aborrecer se fossem conversar com ela.

O casal ficou confuso com os argumentos de sua pequena menina. Não tinham muito o que dizer. Apenas tiveram ânimo para lhe perguntar o que pretendia falar com a senhora, pois não viam interesse em tudo aquilo.

– Vocês vão ver! – respondeu resoluta e foi puxando os dois pela mão, até o canto da calçada, próximo à interessante personagem.

– Vovó, você conhece todas essas músicas? Quantos carnavais já brincou?! – a garota foi chegando e perguntando logo.

A senhora que, claro, estava ocupada cantando, talvez tivesse alguma dificuldade auditiva que seria ampliada, em todos os casos, pela ruidosa percussão e cantoria geral. Não se deu conta logo, portanto, do que estava ocorrendo. A pequena curiosa não desistiu. Cutucou delicadamente a senhora e voltou a repetir sua pergunta. Os pais deram-lhe uma chamada:

– Senhora, querida! Chame a vovó de senhora. Olhe o respeito!

A velhinha percebeu a sua presença, baixou a cabeça, curvou-se em direção a ela com alguma dificuldade, sorriu um sorriso lindo e franco que cativava qualquer um e respondeu:

– Ah, minha queridinha… tive muitos e felizes carnavais, sem dúvida! Perdi até a conta! E, com certeza, as músicas são tão gostosas e alegres que é impossível esquecê-las.

Depois, olhou para o casal e acrescentou:

– Deixem a menina! Não me importo nem um pouquinho em ser chamada de você. O respeito não está em chamar-me de senhora, mas em como ela se dirige a mim, ainda que usando “você”. E ela é um amorzinho!

Os pais deram um sorriso amarelo, meio embaraçados com a iniciativa e os modos da filha e sem saber como reagir à “chamada” que haviam levado. A senhora, que já tinha percebido, fez um gesto de quem diz que não estava ofendida (muito pelo contrário). E, continuando o bate-papo, abaixou-se mais um tiquinho e perguntou se a menina não gostaria de sentar-se num banco, ali no bar da esquina que servia de ponto de concentração para o bloco. Assim, ela poderia descansar um pouco de tanta animação e conversar com a garota calmamente. Isso se os pais dela permitissem e quisessem ir junto.

A menininha olhou para eles com aquele olhar pidão e cativante de criança vivaz e esperta, que sabe muito bem o que está a fim de fazer. Eles não resistiram e decidiram acompanhar as duas, acenando que sim com a cabeça.

Podemos dizer que foi a melhor escolha que fizeram. Sentaram-se. Chamaram o garçom e pediram dois chopinhos, um suco para a menina e ofereceram algo à senhora, o que ela preferisse. Para a surpresa dos adultos, ela sorriu matreira e disse que os acompanharia com um chopp garotinho.  Não era muito de beber, completou, mas de vez em quando não fazia mal, desde que fosse pouco. E, afinal, fazia calor e estava comemorando o conhecimento de novos amigos. Disse isso e piscou para a pequena Mulher Maravilha, que retribuiu a piscadela.

– Eu moro bem aqui, neste prédio de esquina, sobre o bar. Mesmo que eu quisesse muito sossego, hoje isso seria impossível. Com a idade, aprendemos (às vezes), graças ao bom Deus, a sermos mais maleáveis. Então, ao invés de ficar aborrecida no meu quarto, desejando que a bagunça acabasse, decidi juntar-me a ela. De qualquer forma, nunca fui de fazer sesta! – concluiu com uma risada gostosa.

– Você sempre morou aqui? – perguntou a menina.

– Sabe?!? – respondeu a senhora, meio que mudando de assunto. – Acho que você vai ser jornalista quando crescer. Tem olhar para situações diferentes e curiosidade em saber das coisas.

– Será?!? – perguntou a mãe meio envergonhada.

– Talvez sim… Mas isso não importa de fato. A sede pelo conhecimento e o desejo de fazer amizades e conversar com as pessoas é muito bom e importante. Hoje em dia, pouca gente se permite fazer isso. Ou estão muito ocupadas, ou grudadas nos celulares! – completou a senhora.

– Realmente… – foi tudo o que disse o pai da garota.

– Respondendo a sua pergunta, – retomou a conversa com a menina – nasci e vivi toda a vida aqui na Tijuca, sim. Mas não neste prédio ou nesta rua. Eu vim morar neste lugar depois de casada, quando meus filhos já estavam crescidinhos. E continuo por aqui, mesmo depois da morte do meu marido.

– Que dó!!!! Você está sozinha?!?

– Não, minha menina! Meus filhos e netos vêm sempre aqui. E tenho muitos amigos, da minha idade e mais jovens. Por isso gosto tanto de conversar quando alguém se aproxima. É mais fácil fazer amigos assim. E você?… Como se chama? Onde mora?

– Sou a Dedé e meu apartamento fica pra lá. – respondeu apontando para uma rua do outro lado da via principal. Eu moro com papai e mamãe. Não tenho irmãozinhos, mas tenho priminhos bem legais. A gente sempre se vê e brinca junto. Na escola também tenho muitos amiguinhos.

– E você gosta de carnaval?!

– Acho que sim. É alegre, movimentado e colorido. Só que eu não sei tantas músicas como você…

– Mas vai saber. E vai poder ensinar a muita gente: seus amigos, seus filhos, quando você os tiver, seus netinhos. O carnaval me traz muitas lembranças gostosas. Quando eu era nova, a gente ia a bailes nos clubes. Tinha tantas fantasias bonitas! As músicas eram alegres. E também havia vários blocos divertidos nas ruas. Os blocos de sujo, porque cada um se vestia de improviso, com o que tinha à mão. Era bem engraçado!… Houve um tempo em que pensei que o carnaval tinha morrido. Pararam os bailes, pararam os blocos. Mas, hoje, tudo está voltando e a gente vê as famílias de novo passando juntas momentos divertidos com confetes, serpentinas, baterias, músicas e fantasias…

– É…  eu acho que gosto!!! E vou gostar de poder fazer isso até ficar com muitos aninhos como você!

Os pais da pequena “jornalista” ficaram extasiados. A fugida para participar do bloco tinha saído melhor do que a encomenda. O que era para ser só um passatempo de sábado à tarde, para ocupar a filha, cansá-la de ajudá-la a dormir mais cedo naquele dia, tinha se transformado em algo novo, muito especial.

Quando o bloco começou a se mover, pagaram as bebidas e se despediram da dona Gertrude. (“Que nome gozado!” – pensou Dedé…). A senhora tinha comentado que seguir o cordão era um pouco demais para ela… No entanto, como disse, antes de se afastarem, que costumava ir algumas vezes a uma pracinha próxima nos finais de tarde durante a semana e esta ficava no caminho da escola de Dedé, prometeram voltar a ver-se. Aí iriam conversar sobre outras coisas, do passado e do futuro. O presente, concordaram, era melhor vivê-lo do que falar sobre ele.

Podemos confirmar que de fato voltaram a ver-se. E, nesse carnaval, nasceu uma simpática amizade que uniu gerações tão distintas. … Tudo regado a marchinhas atemporais e sorrisos.

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