Série Reflexões na Semana Santa: Abrindo o Tríduo Pascal
Por: Cristina Vergnano
A Páscoa é a festa máxima do cristianismo. Nesta data, como já comentei em outro artigo, a cristandade rememora não só a paixão e morte de Jesus Cristo, mas, principalmente, a sua ressurreição. É a vitória sobre a morte e o pecado, o caminho revelado da redenção, da plenitude no amor e na paz.
Entre os católicos apostólicos romanos, toda a semana se reveste de significado especial. Uma série de celebrações conduzem os fiéis pela história da salvação e a trajetória dos últimos dias de Jesus.
Destaco, agora, deste período, o chamado Tríduo Pascal. Ele se inicia na tarde da Quinta-Feira Santa, na missa da última ceia e do lava pés, passando pela Celebração da Paixão e Morte de Cristo, na sexta-feira à tarde (às 15h), e concluindo-se na Vigília Pascal, no sábado à noite. As três celebrações, na verdade, são uma única, o ponto alto da Semana Santa. Tanto é assim, que só há bênção final ao terminar a missa da Vigília (marcando a continuidade entre o primeiro e o segundo momentos, concluídos no terceiro, ainda que distribuídos em três dias diferentes).
Este ano de 2020 (também já o havia comentado), as cerimônias terão um aspecto bem diferente: estarão marcadas pela ausência física dos fiéis nas igrejas. A covid-19 impôs um isolamento social, o que significa manter-se fora de aglomerações, dentro das casas, evitando, ao máximo, que o vírus se propague de pessoa a pessoa. As cerimônias ocorrerão, como sempre, mas nós teremos acesso às mesmas via meios de comunicação: tevês, rádio e web. Na verdade, é maravilhoso pensar que a tecnologia, muitas vezes despertando sentimentos e opiniões controversas, pode ser elo de união e de comunhão na religiosidade de tanta gente.
Pois bem… a Quinta-feira Santa marca o início do Tríduo Pascal. Aqui no Rio de Janeiro, segundo nosso cardeal arcebispo, D. Orani, às 18h, será transmitida a Missa da Ceia do Senhor. Mas não haverá o rito do lava pés. A cerimônia nos leva ao cenário da instituição da eucaristia, presença viva de Jesus entre nós, renovada a cada missa, dando-se como alimento da alma. Da mesma forma, marca a instituição do sacerdócio ministerial.
Quero, contudo, ressaltar o rito do lava pés, aquele que, neste ano, será omitido na celebração da Quinta-feira Santa (ao menos aqui no Rio). E, por quê?!? Não seria muito mais importante falar da instituição da eucaristia? Sem dúvida! No entanto, meu destaque tem uma razão de ser… O que significa esse lava pés, afinal?
No evangelho segundo são João (Jo 13, 4-15), podemos ler que, antes de iniciar a ceia, Jesus tirou suas vestes, pegou uma toalha e pôs-se a lavar os pés dos apóstolos. Vamos pensar no contexto… A Judeia, assim como o Oriente Médio em geral, era uma região árida, poeirenta, sem os recursos que, na modernidade, possuímos para nos lavarmos, onde as pessoas usavam basicamente sandálias abertas e, ademais, onde havia escravidão como instituição. Lavar os pés, era necessário para a purificação, a limpeza da poeira do exterior. Apesar de caracterizar-se como uma atitude de hospitalidade por parte do anfitrião, era, também, um ato servil, que ficava a cargo de escravos, quando não eram os próprios indivíduos que lavavam seus pés, com vasilhas fornecidas pelos donos da casa, em famílias mais pobres e sem servos. Imaginemos, então, o significado transcendental da atitude de Jesus, o Mestre, o filho de Deus, ao ajoelhar-se e lavar os pés de cada um de seus discípulos. Temos, aliás, uma pista do “escândalo” causado por esse ato na recusa peremptória de Pedro em ser servido pelo Mestre.
E o que representou e, ainda hoje representa, essa atitude revolucionária? Nessa mesma ocasião, Jesus nos deixa seu testamento, o novo mandamento, o mandamento do amor: “Amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13, 34). O ato de lavar os pés simboliza o serviço, o cuidado, o carinho, a entrega no e pelo amor. Ninguém é superior aos outros. Todos somos, em nossas diferenças individuais, iguais. Por isso, não deve haver o estímulo à marcação das posições de senhores e servos. E, principalmente, o trabalho de cada um deve ser visto como parte imprescindível do todo, uma forma de serviço voluntário, gratuito, amoroso, uma doação de si pelo bem coletivo.
Não estou dizendo com isso que devemos trabalhar sempre de graça, ou que ser servo (no sentido de escravo) é aceitável. Em nossa sociedade, o trabalho deve ser remunerado com justiça, isso não se questiona. A condição “servil” da que tratamos aqui, porém, não é aquela percebida em função de sua contrapartida: a condição de dominação. Se todos somos iguais, ninguém é senhor e, portanto, tampouco é escravo. A atuação em favor dos demais deixa de ser um ato de submissão e passa a ser um ato de doação, de amor, porque se quer fazer o outro feliz, pleno, atendido em suas necessidades. Mesmo em tarefas remuneradas, a atitude de serviço, neste sentido messiânico, pode e deve ser cultivada. Ou seja, ao atuar em sociedade, cabe-nos entender que estamos intimamente relacionados, que cada função tem seu lugar e sua importância para o todo e para todos. Ninguém vive isolado. Ninguém é autossuficiente. Ninguém deveria sentir-se senhor e submeter os demais como inferiores. Esta é a lição de humildade, mas sobretudo de amor, do lava pés.
Não realizar o rito nesta Quinta-feira foi uma necessidade imposta pelas circunstâncias de saúde pública. Até pelo bem do serviço e do outro, era preciso manter o isolamento social e minimizar o contato e o possível contágio. Ainda assim, a mensagem reverbera nos pensamentos e corações: “amai-vos uns aos outros”! Que a lição silenciosa fique. Tudo se resume a colocar-se no lugar do semelhante (pois, mesmo tão diferentes, somos seres da mesma natureza), sentir o que não nos agradaria vivenciar, praticar esse cuidado para com o outro. Se fôssemos sinceramente capazes de fazê-lo, que humanidade nos tornaríamos!