Revisitando a Trilogia Tebana de Sófocles: “O caso Édipo”
Por: Cristina Vergnano
O caso Édipo, escrito por Luiz Antonio Aguiar e lançado no ano passado, bem poderia ser classificado como algo entre uma fanfic e um spin-off (ou mesmo uma sequência) devido à sua construção dialógica e intertextual com a Trilogia Tebana de Sófocles. Como o próprio nome sugere, apresenta um componente de mistério, de investigação judicial e thriller policial, embora, a rigor, já saibamos como os crimes dos quais Édipo é acusado ocorreram e por que ele foi condenado.
Mesmo tendo sido construída a partir de obras teatrais, estamos diante de um romance, portanto, uma criação narrativa, apesar de remeter frequentemente a elementos cênicos. A linguagem do texto é atual, com toque de modernidade, e a presença dos elementos próprios do discurso jurídico, necessários à trama, não dificultam a compreensão nem tornam a leitura pesada. Não parece, portanto, ter havido a proposta de criar um discurso que mimetizasse uma forma de falar antiga. No entanto, isso em nada diminui a riqueza dos diálogos, a caracterização dos personagens ou o clima e ambientação em que se inserem os acontecimentos narrados.
No que se refere aos “atores” do drama, temos o protagonismo da princesa Antígona, filha de Édipo, ao lado de Dionísio (o deus do vinho e da literatura) e o antagonismo de Hades (deus do submundo) e Tirésias (vidente cego tebano). Nos seus diálogos, observamos falas contundentes, às vezes rápidas, em outras ocasiões, mais longas e densas. Mostram uma Antígona altiva, decidida, corajosa, obstinada pela justiça, mas com momentos de fragilidade; um Dionísio passional, simpático aos mortais, rebelde e revoltado contra os olimpianos; um Hades irônico, autoritário, provocador e misterioso; um Tirésias arrogante, cínico e, ao mesmo tempo, subserviente ao deus do submundo. Eu ainda poderia comentar sobre outros personagens. Prefiro, porém, omiti-los para evitar os tão desagradáveis spoilers, em especial o detalhe que revelaria a grande jogada final da obra. Fica o convite para descobri-lo.
Em sua construção intertextual a partir da obra de Sófocles, o livro nos envolve num passeio pela história do jovem grego de nascimento nobre, amaldiçoado e marcado por terrível profecia: assassinar o pai, deitar-se e gerar filhos com a mãe. Sua tragédia, porém, é inserida numa nova e intrigante trama. O foco desloca-se para a filha, Antígona, e os acontecimentos da obra teatral são visitados em flashbacks. O mistério é a tônica que instiga o leitor, o qual vai sendo levado pela mão por um universo mitológico, determinado pelo destino e cheio de contradições.
Repleta de personagens complexos, o que se conhece da tragédia e de sua história, atualizado pela visão do autor, não pode ser tomado como verdade inquestionável nem de forma simplória. Existe uma lacuna, um elemento que não se encaixa. Por isso, há espaço para questionar a culpa. Nesse questionamento reside todo o argumento e os movimentos da narrativa, que nos conduzem à conclusão inesperada, de certa forma surpreendente, embora coerente com as suspeitas dos protagonistas. Aliás, a articulação entre a obra-mãe de Sófocles, a tradição mitológica grega e a criação original e imaginativa de Aguiar é perfeita. O senso de continuidade e pertença ao universo edipiano (se assim o podemos chamar) fica evidente e muito bem embasado.
Para concluir, faço um destaque para a qualidade metalinguística e metaliterária de O caso Édipo. Ao princípio citei a presença de elementos cênicos entremeados à narrativa. Na verdade, o cenário onde ocorre o julgamento do caso remete constantemente aos anfiteatros da Grécia Antiga, onde eram representadas as tragédias e comédias. Da mesma forma, o diálogo final entre Hades e Dionísio traz interessantes considerações sobre a gênese do comportamento divino, a forma de contar e construir os mitos e o próprio fazer dramático. Por envolver o deus da literatura, aspecto reiterado muitas vezes ao longo da trama, também é frequente ver comentários sobre a criação literária e a atuação de dramaturgos e atores, acentuando esse pensar a literatura em meio à sua feitura.
Permito-me dizer a vocês que curti muito os momentos que passei desfrutando a história. Espero que meus comentários possam ao menos despertar sua curiosidade. Então, boa leitura!