Trambique: uma prática antiga com novas roupagens tecnológicas
Série histórias do cotidiano: crônica 1
Por: Cristina Vergnano
Haja paciência! Se não bastasse tudo o que temos tido de aguentar com o pesar por tantas mortes, violência e as crises políticas, econômicas e sanitárias, agravadas pela pandemia, ainda é preciso aprender a driblar os trambiqueiros. Há toda uma classe de indivíduos especializada em “dar a volta” nos incautos. Quanto mais boa fé tenha alguém, mais provável é que, em algum momento de sua vida, caia vítima desses ladrões que furtam por meio de golpes.
Recebi hoje a mensagem de um familiar, alertando para o fato de seu celular ter sido clonado. Acrescentou que não está pedindo qualquer tipo de ajuda financeira. Portanto, devemos ignorar toda solicitação nesse sentido apresentada em seu nome, pois se trata de vigarice. E esta é apenas uma das modalidades vigentes.
No outro dia, ligaram para o meu telefone fixo, dizendo que chamavam do banco. Informavam que alguém acabara de fazer uma compra de alto valor, num mercado em Niterói (moro no Rio de Janeiro), utilizando meu cartão de crédito. Precisavam confirmar se teria sido eu e, caso contrário, se ainda tinha comigo o dito cujo. Respondi que eu estava em casa, obviamente, pois falava de um telefone fixo, e não havia feito compra alguma. Insistiram, pedindo que pegasse o cartão e confirmasse sua posse. Não me solicitaram quaisquer dados e aí estava o detalhe inteligente do procedimento criminoso. Afinal, estamos mais ou menos de sobreaviso a respeito dos pedidos de informações pessoais ou bancárias. O rapaz, super atencioso e educado, explicou-me que era preciso eu desligar e voltar a chamar, imediatamente, do mesmo telefone fixo, para o número da central dos cartões, a fim de registrar a queixa e solicitar novo cartão.
Foi aí que comecei a achar a ligação muito estranha. Sou desconfiada por natureza para essas coisas e já estava com a pulga atrás da orelha, mas, naquele momento, as peças passaram a não encaixar mais. Primeiro, a ênfase no “ligar imediatamente”. Depois, no uso “mandatório do mesmo telefone fixo”. Por que isso? Afinal eu poderia fazê-lo de qualquer aparelho, a qualquer tempo, não?! A desculpa do interlocutor era comprovar que, de fato, eu estava em casa. Estranho, né?! De onde mais eu poderia atender do meu fixo? Para completar, o número da central de cartões por ele informado não coincidia; pelo que me pareceu, era um antigo, já fora de uso.
Claro que não liguei coisa nenhuma! Preferi entrar em contato com a gerência via aplicativo do computador. Reposta: “É golpe; clonaram seu celular“. Ok, confirmei o golpe! Aliás, enquanto eu estava no contato com o banco, o telefone voltou a tocar: o mesmo chamador. Deixei que se cansassem sem atender. Naturalmente, perceberam que haviam sido descobertos e desistiram. Tentariam, com certeza, com outra pessoa mais desavisada.
Qual a minha suposição sobre o que ocorreria, caso eu ligasse? Bem, como teria sido eu mesma a entrar em contato, assumiria tratar-se de uma central legítima, não de alguém interceptando minha chamada. Responderia, assim, todas as perguntas e informaria tudo o que pedissem. Teriam dessa forma, provavelmente, meu número de cartão, o código de segurança, talvez a senha, meu CPF, nome completo, endereço e sei lá mais o quê! A partir daí, eu teria verdadeiras compras indesejáveis e altíssimas na fatura e um trabalhão para provar que não haviam sido feitas por mim.
No passado, os golpistas precisavam apresentar-se pessoalmente. Convenciam por sua aparência confiável, sua fala simpática, seus argumentos contundentes. Com isso, vendiam terrenos inexistentes, ações que renderiam uma fortuna, viagens e eventos dos sonhos, tudo por preços inacreditáveis para tamanhas ofertas. O problema é que os enganados perdiam muito, ou, com frequência, todas as suas economias. Na atualidade, o grande aliado desses ladrões é a tecnologia. A mesma que nos é tão útil, pode servir à nossa ruína. São telefones e cartões clonados, transações eletrônicas que se perdem no emaranhado da rede, lojas virtuais fictícias, vírus que coletam dados de nossos computadores. Tudo bastante difícil de detectar.
Apesar dos meios diferentes, há muita semelhança nas táticas utilizadas, em ambos os momentos da história. Sempre são ofertas irrecusáveis e ajuda contra perigos iminentes efetuadas por gente atenciosa, educada, com uma excelente lábia e uma apresentação confiável. A equação envolve, por um lado, a habilidade dos criminosos, em especial com a linguagem. Seus discursos têm uma argumentação quase perfeita e não dão tempo ao interlocutor para pensar a respeito. Por outro, apoia-se no ardente desejo de sucesso ou ganhos, com mínimo custo e esforço, presente no fundo de cada um (ou da maioria) de nós. E é esta peculiaridade, somada à tendência a crer nas pessoas, que acaba se tornando a perdição dos ludibriados.
Enfim, trambiques não são novidade. Estão com a humanidade, temo eu, desde o momento no qual se percebeu que seria possível levar vantagem sobre os demais com base numa mentira travestida de verdade. Indignante é pensar que as vítimas podem ser culpabilizadas devido à sua ingenuidade e que, para viver com um mínimo de segurança neste mundo, é preciso abrir mão da boa fé. O fato parece ser que essa dúbia arte do engano goza de certo prestígio. Não fosse assim, estaria relegada ao seu lugar de crime, abandonando de vez uma série de programas televisivos e atuações de personalidades públicas. Ninguém mais faria referência à “Lei de Gerson”, ou se orgulharia da máxima que prega. Pobre coitado do jogador e que papel na história lhe imputaram!