Leitura em tempos de tecnologias digitais: parte 1
Por: Cristina Vergnano
Em setembro de 2020, a Agência Brasil anunciou que, de acordo com a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, realizada pelo Instituto Pró Livro em parceria com o Itaú Cultural, o país perdeu em 4 anos (de 2015 a 2019) mais de quatro milhões e meio de leitores. Curiosamente, o abandono dos livros foi maior entre pessoas com nível de escolaridade superior e maior poder aquisitivo. Outro detalhe interessante é que a pesquisa foi realizada antes da pandemia de covid-19, com coleta de dados entre outubro de 2019 e janeiro de 2020. Eu poderia começar especulando e analisando por que o fenômeno se deu nesse grupo específico de leitores, mas prefiro tomar outra direção, enfatizar outros aspectos.
Uma das críticas apoiada nos resultados do “Retratos da Leitura no Brasil” se volta para o gasto do tempo livre com as redes sociais, ao invés de com os livros. Isso nos leva a associar a ausência do processo leitor à falta de consumo do suporte livro. O problema dessa premissa reside na complexidade da questão, a qual não deveria ser tomada de forma leviana nem com o foco estreito. Proponho, então, algumas reflexões a respeito, frutos da experiência que fui construindo ao longo de meu tempo como professora universitária e pesquisadora em leitura.
Num primeiro ponto, devemos tomar consciência de que a leitura, em certa medida (já que há outras formas de leitura), é a cara-metade da escrita, estando ambas intimamente ligadas. Mas, por que falar nesta, se o tema do artigo é o processo leitor? Bem, embora quase nunca nos demos conta disso, a escrita é uma tecnologia, criada pelos seres humanos há cerca de 5.500 anos atrás. Ou seja, pensar em termos tecnológicos não se restringe à informática, certo?! Hoje, a escrita ocupa um lugar significativo nas nossas atividades, em diferentes suportes, línguas, formas de grafar e culturas. E, se está escrito, pressupõem-se que deva/possa ser lido. Mesmo uma pessoa analfabeta, vivendo nas sociedades modernas, tem noção da relevância ou da penetração no cotidiano dessa invenção humana.
O segundo aspecto é que alguém ser analfabeto não significa estar totalmente privado ou privada da atividade leitora. Como bem defendia Paulo Freire, a “leitura de mundo precede a leitura da palavra”. Todos interagimos com nosso meio e com os demais, observamos, tiramos conclusões, aprendemos, nos expressamos. Isso, num sentido amplo, resulta em leitura. Ter tal consciência, usar essa experiência como ponto de partida, favorece, assim, tanto o aprendizado da escrita (uma escrita significativa), quanto o da leitura da palavra.
Ler, portanto, nosso terceiro ponto, constitui uma atividade eminentemente humana, aprendida, social, mas também, cognitiva. Em termos de cognição, envolve diversas estratégias e a mobilização de um conjunto amplo de conhecimentos. Construir compreensão implica ativar conhecimentos prévios tanto sobre o mundo que nos cerca, quanto sobre a língua, a organização dos discursos, a estruturação dos diferentes tipos e gêneros textuais. Está igualmente ligado à memória e à capacidade de associar textos diversos com os quais tenhamos tido acesso. Quando lemos, tecemos hipóteses sobre o material acessado; comprovamos ou rechaçamos essas hipóteses, conforme o caso; preenchemos lacunas de informação; reconhecemos funções comunicativas dos textos e a agimos de acordo; estabelecemos objetivos segundo nossas necessidades e graduamos a abordagem do material lido segundo esses parâmetros.
Ora, tudo isso é bastante complexo e demanda esforço, o que nos leva ao ponto quatro. Para lermos bem, precisamos ser capazes de fazer essas coisas, pois nos permitem estabelecer sentidos para o texto. Não basta apenas estar alfabetizado, conseguir identificar palavras soltas ou frases isoladas. Como nem sempre é tarefa fácil, muitos não se veem como bons leitores. Daí, haver pessoas que acham cansativo ler e preferem fazer outras atividades: não devido, exatamente, a desgostarem da leitura, mas porque têm dificuldades em alcançar seus objetivos e atribuir sentidos.
Atualmente, entendemos a leitura como um processo interativo, porque nela interagimos com o texto, o autor, outros textos e conhecimentos prévios, tudo a fim de construir os tais sentidos. Cada leitura permite atualizar o material lido, segundo as bagagens dos vários indivíduos leitores. Essa é a razão para existirem diferentes interpretações, embora não infinitas, para uma obra lida por muitas pessoas, ou por uma mesma em épocas distintas. Além do mais, não se lê de forma igual em situações variadas nem ante textos de natureza diversa.
Pensemos, então, num quinto ponto… Seguindo essa lógica da sociedade letrada e rica em variedade de materiais para serem lidos, como seria possível afirmar que as pessoas leem menos? Afinal, estamos cercados de textos e precisamos deles em nossas atividades diárias. Mesmo a responsabilidade atribuída às redes sociais como fator de decréscimo da prática leitora tem um certo viés, pois, excluindo os vídeos e imagens (e ainda aqui poderíamos considerar que há um tipo de leitura), as postagens estão recheadas de conteúdos verbais escritos que precisam ser lidos. O relatório do Instituto Pró Livro, por sua vez, destaca a baixa na compra e leitura de livros, pontuando, inclusive, que muitos sequer são concluídos. Ou seja, seu foco se volta para o consumo de literatura impressa e publicada. Literatura essa que, de fato, se caracteriza e destaca por sua complexidade, riqueza no uso da linguagem, capacidade de provocar efeitos no leitor e por estimular a fruição, donde reconhecemos sua importância. Mas ela não está só nesse universo da palavra.
Como comentei acima, dada a complexidade da questão, não é possível tratá-la rapidamente, mesmo quando o grau de profundidade das discussões apenas arranha a superfície do tema. Por essa razão e para evitar ficar cansativa, proponho uma quebra aqui. Na próxima semana, terça-feira, dia 29 de junho, vocês poderão continuar lendo a respeito. Vamos explorar juntos um pouco mais o tópico da tecnologia e tentar responder, ainda que provisoriamente, uns questionamentos, na segunda parte do artigo. Até lá!
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