Condição análoga
Por: Cristina Vergnano
Ela chegou àquela casa havia muitas décadas. Ali, tornou-se seu espaço, embora jamais pudesse ser chamado de lar. Tinha, então, somente doze anos. Era miúda, retraída, mas forte. Entrou silenciosa, de mansinho, pisando nas pegadas dos senhores que a tinham trazido do interior, uma tímida sombra.
Fazendo, somou aos saberes de sua bagagem novos modos de cozinhar, de lavar, de limpar, de cuidar. Os dias eram todos mais ou menos iguais, do nascer ao pôr do sol, sempre naquele local, sempre com aquelas pessoas. Os anos, num ritmo imensurável, acumulavam pregas à sua pele, calos às suas mãos.
“A vida é assim”, pensava. “Essa é minha lida, minha nova família (eles mesmos o diziam). O que mais existe além dessa realidade? Que sonhos podem ser sonhados pra além da porta de entrada?”
Numa manhã, vieram umas pessoas, autoridades trabalhistas. Alguém os tinha alertado. Disseram-lhe que sua vida não era trabalho, não era fazer parte de uma família: era escravidão.
Depois de mais de setenta anos, sua verdade constitui uma mentira. No dia 13 de maio, 134 anos mais tarde, ecoa ainda o pronunciamento de abolição da abolição.
Nota da autora:
Este miniconto foi inspirado em uma história real, noticiada na sexta-feira, 13 de maio de 2022. Trata-se de uma mulher de 86 anos resgatada de um trabalho em condição análoga à escravidão, numa residência na zona norte do Rio de Janeiro, na qual serviu por setenta e dois anos. A triste realidade é que ainda há muitos casos de escravidão no Brasil. A abolição, como acontecimento histórico, demanda reflexão, pois nem foi capaz de gerar condições para os libertos se inserirem dignamente na sociedade, nem extinguiu a prática da exploração da força laboral de determinados indivíduos, tantos anos mais tarde.