Opinião

E por falar em “a gente era assim”

Por: Cristina Vergnano

Terminei, na quinta-feira passada, a leitura de “a gente era assim”, último livro de Luiz Antonio Aguiar, com lançamento marcado para 18 de abril de 2023, na Janela Livraria, Rio de Janeiro. Teria, sem dúvida, a concluído antes — não por ser uma publicação breve (73 páginas) ou fácil — mas me estorvaram atividades e compromissos cotidianos, cuja existência costuma nos desviar de nossos planos.

Trata-se de uma narrativa que envolve o leitor e o leva pela mão, incitando reflexões e instigando memórias, em especial daqueles que compartilham a faixa geracional do narrador personagem. Apesar dessa afinidade, ressalto que a coincidência com as percepções presentes na obra nunca será perfeita, posto nascerem de experiências pessoais (não necessariamente autobiográficas) e estarem sujeitas a fatores sociais, econômicos, de localização geográfica e configuração familiar. Afinal, entre outros aspectos, leituras se constroem com base nas bagagens de quem lê. Tais diferenças, porém, dão ainda mais sabor ao processo de fruição, nos despertando para as múltiplas possibilidades trazidas por uma história compartilhada.

Ao lê-lo, texto me evocou a máxima de que é preciso conhecer o passado para entender o presente, pista, aliás, dada pelo próprio autor. Fui, então, tentar descobrir a citação precisa e me surpreendi, pois o conceito é recorrente, atribuído a autores de lugares e épocas distintos, com algumas variações. Encontrei na internet frases como: “pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro” (atribuída a Heródoto); “Eis o relato das investigações feitas por Heródoto de Halicarnasso. O autor não quer que, no decurso do tempo, se vá obliterando a memória das realizações humanas, mas deseja que as grandes e notáveis obras, feitas pelos gregos e pelos bárbaros, continuem vivendo na recordação dos homens. Sobretudo quer mostrar por que razão entraram em conflito uns com os outros.” (fragmento inicial de Historiae, de Heródoto, citada por Besselaar, numa conferência proferida em 1959, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, SP); “se queres prever o futuro, estuda o passado” (Confúcio, citado em toda matéria) e “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo (George Santayana, citado na Super Interessante dez/2011).

Por que esta digressão é pertinente aqui? Em princípio, devido ao fato de, pela voz de João Fernando, homem, visitarmos a intimidade da família, dos pensamentos e sentimentos de João Fernando, adolescente: um moleque vivendo na Copacabana dos anos 1960 e 1970. O personagem reflete sobre sua história particular nos âmbitos doméstico, nacional e mundial, tentando estabelecer conexões entre presente e passado, explicar-se/entender-se e aos contextos vivenciados.

Como se pode adivinhar, tudo nos chega mediado pelas recordações do protagonista. Como tal, vem fragmentado, intercalado de acontecimentos diversos, de posicionamentos de terceiros, emoções e sensações do personagem, sem uma ordem precisa, cheio de idas e vindas, abandonos e retomadas, explícitos e implícitos. Em síntese, da mesma forma como se forja o pensamento: segmentado e carregado de subjetividade. Uma história que se constrói pela visão retrospectiva, a qual, no final do dia, constitui um constructo da realidade. Neste sentido, a escolha do foco narrativo em primeira pessoa, com intromissões de diálogos e “citações” (por falta de palavra melhor), favorece a imersão do leitor nessa vida, nessa cabeça, nesse coração, olhando pelos olhos, tanto do adulto quanto da criança, um mundo de grandes contradições e, por que não dizer, hipocrisias.

Em termos cognitivos, armazenamos as experiências da vida de forma não linear na memória e o fazemos a partir daquilo que nos é relevante. O que se conserva, no entanto, não representa um retrato exato do real, justamente pelo filtro de nossa subjetividade. Ainda assim, é importante garantir a sobrevivência das diversas recordações, pois, deste quebra-cabeças de diferentes percepções, se pode obter algo mais próximo aos fatos. Não é coincidência que haja sempre uma história oficial, registrada e contada por quem detém o poder, nem que ocorram tantas tentativas de apagamento, em especial em regimes de cunho autoritário.

Embora sujeitos, uma vez mais, à interpretação subjetiva, reunir pequenos detalhes, isolados ou em conjunto, da vivência de membros de determinada comunidade nos permite intuir comportamentos, preconceitos, angústias, carências silenciadas. Conforme observamos nas citações que trouxe ao princípio, dessas constatações, desse exercício de analisar criticamente os fragmentos da história, podem emergir a consciência dos erros e o desejo de mudança e acerto. Também o entendimento de situações vividas por nós no presente, fruto de aparente incoerência e desconexão com o mundo, pode ser alcançado nesse movimento de interiorização, resgate e avaliação. Por isso é tão importante expor mesmo aquilo que incomoda.

Luiz Antonio Aguiar nos confessa ter sentido necessidade de escrever esta história e de fazê-lo numa produção independente, a fim de garantir tal reflexão de um tempo que viveu, tanto num passado mais remoto, como noutro bem mais recente. É impactante nos darmos conta de o quanto as violências, preconceitos e incongruências do hoje podem ter começado a se gestar naqueles anos. Que, guardadas as especificidades de cada história particular, algo (ou muito) de nós era daquela forma e, com frequência, continua sendo assim.


Nota da autora:

Apresentei, neste artigo, algumas citações recolhidas em pesquisas na internet, a fim de ilustrar a evocação que a obra de Luiz Antonio Aguiar me suscitou. Senti, porém, a necessidade de incluir a presente observação, mesmo após haver publicado o artigo. A rede nos trouxe o acesso a dados em profusão. É como ter uma biblioteca ao alcance de um click, com fontes, origens, idiomas, autorias, orientações ideológicas e científicas amplos e variados. No entanto, também comporta incertezas, imprecisões, atribuições indevidas, fake news. Portanto, requer uma leitura fina, cuidadosa, crítica, com seleção criteriosa do que ali se encontra. Dependendo dos usos, o rigor deverá ser maior. No caso de minhas referências, esclareço que a primeira frase de Heródoto, embora possa de fato lhe pertencer, foi localizada no site Pensador (https://www.pensador.com/frase/NTQyMDQ4/), sem fonte originária. Por isso, decidi incluir o termo “atribuída” nesse caso. Ela foi mantida, apesar deste aspecto, por sintetizar o exposto no longo fragmento do Historiae de maneira mais direta e clara. No que se refere às demais citações, suas fontes foram:

BESSELAAR, J. V.D. Conferência: Heródoto, o Pai da História (1) In: Revista de História, v. XXIV, ano XIII, n. 49, jan-mar 1962. p.3-26. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/121556/118443 Consultado em 13/04/2023.

BEZERRA, Juliana. “Confúcio” In: toda matéria. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/confucio/ Consultado em 15/04/2023.

VINHAS, Tânia. “Frase da semana: ‘Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo’” In: Super Interessante, 23/12/2011. Disponível em: https://super.abril.com.br/coluna/superblog/frase-da-semana-8220-aqueles-que-nao-conseguem-lembrar-o-passado-estao-condenados-a-repeti-lo-8221/ Consultado em: 15/04/2023.

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