Narrativas breves

A dor ensina a gemer

Por Cristina Vergnano

— Boa tarde, senhor Justino. Só concordei em atendê-lo dada a sua insistência. Por isso, diga logo a que veio.

— Boa tarde, senhorita Clotilde. Vim com o desejo de revê-la e folgo em encontrá-la com as faces tão rosadas.

— Pois seu desejo foi atendido. Passe bem.

— Por favor, espere! A senhorita abandonou os bailes. Sentimos muito sua falta.

— Sentiram? E por que iria eu frequentar os salões? Sei o quanto falam de mim, do ocorrido.

— Não tenha cuidados, pequena Clotilde. Sua inocência e doçura são voz corrente.

— Façamos de conta que lhe creio. E, com licença, pois estou ocupada.

— Mais um momento, sim? Queria contar-lhe: ontem encontrei o Rodolfo.

— Agora basta! Não me fale naquele, naquele,

— Monstro? Com certeza. Ele é isso e muito mais.

— Ora, vejam só que surpresa! Pois não era seu melhor amigo, o indivíduo?

— Não se pode ter amizade por tal degenerado. Ferir alguém tão delicada, uma pombinha.

— Poupe-me dos seus galanteios.

— Não o são. Representam a mais pura verdade de meu peito.

— Sei. Terminamos?

— Bem, gostaria de dizer-lhe algo mais, se me concede a ousadia. Encontro-a mudada.

— O que esperava? Ninguém passa pelo que passei impunemente.

— Decerto, no entanto.

— Fiquei, de fato, arrasada a princípio. Então, conheci uma nova amiga e tudo se transformou.

— Amiga? E sabe-se quem é essa ilustre pessoa?

— Claro, chama-se Aurélia, Aurélia Camargo.

— Não me diga que… Oh, por favor, aquela mulher não serve como companhia para uma donzela como a senhorita.

— Muito pelo contrário, abriu-me os olhos a um mundo que eu teimava em ignorar. O senhor sabia que há mulheres lutando pela participação política, que escrevem, criam arte, trabalham e gerenciam, inclusive, negócios?

— Serão imprestáveis para usar os atributos femininos. Não, a senhorita!

— Faça-me o favor! O que esperava de mim? Que eu definhasse de tristeza até morrer, me encerrasse num convento, ou, melhor ainda, aceitasse de bom grado a piedade de algum cavalheiro (o senhor, talvez?), vindo em seu corcel branco livrar-me do jugo da solteirice?

— Eu não diria com tais palavras, porém…

— Quer saber, senhor Justino, passe muito bem; ou mal! Pouco me importa. Deixe-me e nunca retorne. O senhor não é melhor do que aquele estrupício a quem quase cometi a loucura de me entregar.

— Mas, mas.

— Amélia, traga o chapéu e a bengala do visitante. Ele está de partida.


Notas da autora:

O livro Dentro da Noite, de João do Rio, foi publicado pela primeira vez em 1910. Contém dezoito contos lançados entre 1904 e 1910, em A Gazeta de Notícias. Suas temáticas envolvem desvios de comportamentos da sociedade da época, incluindo aspectos sexuais, uso de drogas, compulsão por jogo e cleptomania. O tom da narrativa é mordaz e crítico. O livro, em domínio público, pode ser acessado em: https://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/dentro_da_noite.pdf

O conto dialogado que criei, cena inexistente na obra original, desenvolve uma conversa entre dois personagens do conto “Dentro da noite”, da obra homônima de João do Rio. Localiza-se, temporalmente, após um encontro entre Justino e Rodolfo, ex-noivo de Clotilde. Este jovem se afastou do convívio de seu meio, devido a um comportamento sádico, o qual ocasionou o rompimento do compromisso e vários disse-me-disse no círculo de amizades.

Aurélia Camargo, citada no meu conto, é a protagonista do romance Senhora, de José de Alencar, também em domínio público, disponível em: https://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/senhora.pdf

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