Uma petição fantástica
Por: Cristina Vergnano
Só algo assim para me arrancar da rede e fazer sentar diante do computador, a fim de escrever o relato que agora lhes conto. Era uma tarde de modorra e, talvez por essa razão, vocês possam não dar crédito, ou sequer considerar seriamente o episódio. Nem os culpo.
Eu tinha acabado de almoçar. O único que dava vontade era me deixar estar, alheia a tudo, divagando e desejando algum sopro de frescor com a chegada da noite. Arrastei o corpo até a varanda e me larguei na rede, olhando para além das copas das árvores ao redor. Se perguntarem por quanto tempo fiquei ali, não saberia dizer. O mundo parecia parado, em expectativa, sem ruídos, ou movimento. A luz cegante do sol, o calor acachapante e a umidade intensa, sufocando as entranhas e me banhando num suor que se recusava a evaporar, dominavam o entorno.
Permaneci na rede, tentando resgatar o foco, até me dar conta do vento. Ele chegou de repente, violento, sacudindo tudo em volta. O ambiente se encheu de sons ameaçadores. A claridade se esvaiu e foi substituída por um céu cinza chumbo, quase sólido. A mudança no cenário foi tão brusca que me arrancou da letargia. Lembrei da fúria do fantasma do capitão Gregg, que fazia girar o barômetro do Chalé das Gaivotas enlouquecidamente, quando era contrariado. Algo estava para acontecer, pensei.
As folhas e galhos das árvores criavam vórtices, começando a invadir a varanda. Lá fora, o mundo chacoalhava e, em breve, eu sabia, os danos começariam a aparecer em carros estacionados, vidraças, telhados, pessoas desavisadas insistindo em enfrentar a ferocidade da natureza. Considerei prudente sair dali o mais rápido possível, não sem antes fechar as janelas e portas de acesso à sala e ao escritório. Porém, fui lenta, porque, ao me levantar da rede, um redemoinho incomum barrou meu caminho. Girava como qualquer outro, mas o fazia de modo controlado, na vertical, sem tocar o piso cerâmico.
— Que raios tá acontecendo aqui? — Disse mais alto do que o necessário para alguém sozinha e me assustei com meu próprio grito.
— O que há é que preciso de um favor seu. — Respondeu uma voz infantil, saída do torvelinho, o qual começava a se dispersar. Eu ouvi, juro! Nenhuma semelhança com os barulhos da ventania. Sei bem a diferença.
Ao mesmo tempo em que a pequena figura se tornava mais nítida para mim, a ventania diminuiu e foi sendo substituída por uma forte pancada de chuva, com pingos grossos, cujo ruído parecia mais a queda de granizo. Mantive os olhos pregados na aparição, esfregando-os com os dedos e piscando repetidamente. Aquilo não podia ser verdade! Eu devia ter sofrido uma concussão provocada pelo golpe de algum dos galhos voadores.
— Vai ficar com essa cara de trouxa, aí parada? Quero sentar. O papo vai ser longo. — Desafiou-me a pequena criatura parada na minha frente, com as mãos na cintura e a cara fechada, entre uma baforada e outra de seu cachimbo de bambu.
Ainda sem dizer palavra, apontei para uma banqueta, acenei com a cabeça e desabei de volta na rede. Sério, sem gozação. Eu acabava de receber, no meu apartamento, ninguém menos do que um saci. E ele queria um favor.
Sempre pensei que o moleque arteiro fosse alegre, descontraído, pronto para fazer pilhéria e provocar alguma traquinagem. No entanto, o ser diante de mim estava carrancudo. Contrariado, eu diria.
Tomei fôlego. Caso aquilo fosse um sonho ou uma alucinação, entrar no clima não ia fazer mal: tudo teria passado quando eu acordasse. Se, ao contrário, fosse à vera, talvez valesse a pena escutar com atenção e deferência. Não gostaria de cair em desgraça com ele. Afinal, sua fama é a de apoquentar o juízo das pessoas. Imaginem se resolvesse me pegar pra vítima…
Muito compenetrada, depois de me acalmar, falei:
— Você precisa entender que não é todo dia que um saci em pessoa visita a gente.
— É… mas teve um tempo em que era bem comum. Vocês tão perdendo o respeito. Por isso eu tô aqui.
— Como assim, perdendo o respeito? Que que eu tenho a ver com isso?
— Olha, vou direto ao assunto. Essa competição estrangeira é safadeza e covardia.
— Competição?
— Esse tal de relouim. Um abuso! É nas lojas, na tevê, nas casas, até nas escolas. Um tal de fantasia de monstro, doces, festas com música barulhenta… Assim não dá!
— Ah, tô começando a entender. Sabe, o mundo moderno é uma província, tá tudo muito perto e conectado. Os costumes se misturam, coisa normal.
— Chega de lenga-lenga! Não tô aqui pra avacalhar com quem é diferente ou gringo, mas, dá um tempo. Vamos apoiar o produto nacional, né?
Tive de achar graça, com muita cautela para não enfezar ainda mais o visitante, claro. Em parte, concordo com ele, porém, que é engraçado, lá isso é.
— Calma, o caso nem é pra tanto. Você sabe que criaram o Dia do Saci, por lei, comemorado no mesmo 31 de outubro, né?
— Sem essa! Medida cala a boca pra enganar trouxa. E isso eu não sou!
— Lógico que não. Mas a data existe justamente pra valorizar a cultura, as tradições e o folclore brasileiros.
— Sei. Me engana que eu gosto! O tal relouim dá muito mais oba-oba.
— Ok. E o que você quer de mim, afinal?
— Você é escritora, né? Então, escreve.
— O quê?
— A minha história, o meu protesto. Faz uma petição no meu nome e publica, ora bolas!
Depois de esclarecer sua intenção, a nossa conversa durou um bom par de horas, o tanto que custou para a chuva passar e o céu clarear um pouco. Ele fez questão que eu anotasse, tintim por tintim, os detalhes de toda a sua contribuição para o imaginário popular, os sustos, as peças pregadas. Garantiu que, a despeito das más línguas, ele é do bem, só quer se divertir e, em geral, faz reinação apenas com quem merece.
Confesso, agora, que foi uma tarde, no mínimo, intrigante e bastante divertida. O danado do moleque faz a gente rir gostoso, esquecer o tempo e deixar a vida correr leve.
Quando se deu por satisfeito, conferiu as minhas anotações. Lançou uma baforada do cachimbo no papel, que deixou marquinha de carvão. Disse que era a sua assinatura e valia como contrato de cessão de conteúdo. Fez uma reverência com a sua carapuça vermelha, criou um redemoinho e desapareceu como chegou. Eu, da minha parte, prometi escrever esse episódio e publicá-lo no meu blog, fazendo bastante publicidade a respeito. Dito e feito! É só acessar a página para comprovar.
Hoje, passado uns dias e revisando o que aconteceu, espero que ele tenha ficado satisfeito. Imagino que sim, pois não voltou a dar as caras por aqui. Em todo o caso, quando estoura uma ventania de repente, o céu escurece e a chuva cai forte numa tempestade (por favor, não caiam na risada), fica difícil deixar de me perguntar se não seria o saci, pedindo contas da sua petição.
Realmente fantástica. Amei!
Sou fanática pelo relouim (kkk), só espero não me defrontar com um protesto por aqui!
Legal você ter curtido, Ale! 🙂
Eu, na verdade, não tenho nada em especial contra o Halloween. Apenas acho que não temos necessidade de importar festas e personagens de “terror”, pois nossa cultura é rica em fantasia, imaginação e festividades. Lamento esse certo desconhecimento e abandono de nossas raízes em detrimento das estrangeiras (elas bem poderiam coexistir, né?). É quase como se não tivéssemos nada de interessante para contrapor às importações. Mas não se preocupe, não: o saci é do bem e tem tolerância, não vai apoquentar você! 😉