Reflexões de início de ano
Por: Cristina Vergnano
Para nós, católicos, o ano litúrgico (da Igreja) se inicia com o Advento, período de preparação para a vinda de Jesus (4 semanas antes do Natal). O tempo natalino é um prolongamento da festa do Natal de Cristo (ápice do ciclo). Estende-se do dia 25 de dezembro até o Batismo do Senhor (que, neste ano de 2021, será no domingo 10 de janeiro), passando pelas festas da Sagrada Família (primeiro domingo após o Natal), a de Santa Mãe de Deus (1º de janeiro, encerrando a Oitava do Natal) e a da Epifania (quando Jesus se manifesta a todos os povos, simbolizados pelos reis magos, como Salvador). Portanto, é plenamente aceitável que as mensagens de paz, amor, bênçãos e graças relacionadas à alegria sentida pela presença do Deus Conosco sejam compartilhadas para além do dia 25 de dezembro.
O ano de 2020 foi complexo e, no meu caso, continuou atribulado no seu final. Isso me fez estar um pouco ausente do Tecendo o verbo. Também resultou na falta de qualquer texto meu: história, artigo ou mensagem, nesse período. Saibam que eu gostaria de ter-me adiantado como de costume. Não foi, contudo, possível. Aproveito, assim, a generosidade do calendário litúrgico católico, que prolonga esse tempo de graça, para lhes escrever e desejar meus sinceros votos de paz e bem.
Como eu antecipava acima, o ano que passou trouxe muito sofrimento, tristeza, solidão, angústias e dificuldades. Não vou aqui deter-me a fazer retrospectivas, pois já existem várias bem melhores do que a que eu poderia oferecer-lhes. Afinal, para uma boa retrospectiva, é necessário anotar a cada dia todo fato relevante, a fim de usar tais anotações no momento propício. Ou, se isso não for feito, realizar uma abrangente pesquisa, passados (ou quase) os 12 meses, procurando montar um panorama completo. Não me proponho a fazê-lo, nem tomei as devidas notas para recuperar. Dessa forma, limito-me a trazer algumas reflexões de âmbito mais geral e compartilhá-las com vocês.
Muita gente diz que 2020 foi o ano que não existiu (eu, inclusive, o faço às vezes de brincadeira), embora as ocorrências que o marcaram tenham sido bastante concretas e reais. Pessoalmente, o considero o “ano do medo” e, ainda, o “ano da conscientização”. Medo, porque enfrentamos a morte em massa espalhada por todo o planeta face a face. Claro que, já faz tempo, há muitas mortes: por guerras, epidemias, desnutrição, subdesenvolvimento, violências das mais diversas. Mas, nesse ano, elas pareceram mais visíveis, próximas, implacáveis, generalizadas. Perdi minha mãe devido à Covid-19 e, dado o enorme número de falecimentos, não estou só: muitas e muitas famílias pelo mundo perderam ao menos uma pessoa querida.
Um detalhe, que talvez represente o diferencial na situação que vimos vivendo, é o fato de que sequer nos foi permitido um luto tal como o entendemos. Ao termos que nos distanciar fisicamente, os abraços, o choro compartilhado, o calor humano do afeto solidário não puderam ser exercitados nem sentidos. Os enterros foram sumários, sem velórios, sem contato familiar. Mesmo sabendo que, em guerras, invasões, golpes militares sangrentos e epidemias, essa situação se repete e é comum, pudemos, em 2020, vê-la de forma ampla e próxima. A pandemia atingiu ricos e pobres, primeiro e terceiro mundos, pessoas de todas as idades, credos, orientações político-ideológicas e gêneros.
Além dos casos graves e fatais da doença, também assustaram o sentimento de incerteza ante o futuro, a insegurança que fez morada no nosso dia a dia, o vazio e a solidão do cárcere doméstico auto imposto (ou determinado pelas autoridades). O problema é que não tínhamos a memória recente de tal calamidade. Aqueles que gozam do privilégio de usufruir os avanços e o conforto da sociedade moderna, de repente, se viram quase tão frágeis e impotentes quanto os que compõem a enorme massa de vítimas da desigualdade imperante no mundo. E esta é a minha deixa para o que chamo de “ano da conscientização”.
A ideia não é exclusiva minha. Já ouvi algo a respeito em outras reflexões sobre o que estamos observando. Permito-me, no entanto, apropriar-me dessa constatação. Durante as crises que iniciaram com a Covid-19 e foram avolumando-se por todo o ano de 2020, ficou patente como a balança de nosso planeta anda desregulada. Como habitualmente ocorre, as consequências da doença, do distanciamento social, do fechamento de postos de produção e serviço deixaram manifesta a enorme pobreza que assola grande parte da população mundial. Também o despreparo geral para lidar com situações extremas, garantindo os direitos de todos e todas. Sistemas de saúde sem condições de atendimento; falhas no fornecimento de energia, água, alimentos, insumos médicos; catástrofes ambientais; desmandos de governantes; corrupção; preocupação com o sistema financeiro, em alguns casos, maior do que pelas pessoas; negação da realidade, com ataques à ciência, desrespeito aos civis; contraexemplos; cinismo… tudo isso pudemos observar em diferentes partes do planeta através dos olhares da imprensa.
Nem tudo, porém, foi caos e degradação. Apesar de podermos questionar, em várias ocasiões, a expansão dos meios informáticos, temos que admitir, por exemplo, que a internet e as ferramentas digitais possibilitaram aproximação, contato, organização de atividades as quais precisavam ser retomadas de forma segura. O mesmo se diz da solidariedade que se manifestou entre grupos e indivíduos, minimizando o sofrimento e as consequências trágicas da pandemia. Muitos, ademais, começaram a encarar sua existência com outros olhos, a pesar atitudes, rever conceitos e práticas, propor-se e abrir-se a mudanças.
O ser humano é falível, egoísta, ambicioso, mas é, igualmente, capaz de reinventar-se e de lutar por um mundo melhor. Nossa criatividade encontra saídas para as piores realidades. Se bem é verdade que podemos esperar outras dificuldades globais daqui para adiante, muitas delas resultados de nossas ações impensadas, é factível assumir que choques como este da Covid-19 podem abrir mentes e levar-nos a trilhas mais acertadas para coletividade e o planeta.
Chegamos, após tantos dissabores, a 2021. Não é possível encará-lo com a ingenuidade de quem crê que tudo vai mudar só porque viramos a página de um ano civil. As marcas da desigualdade e da pandemia (que, a propósito, não acabou) continuam aí, tangíveis, gritando por ações. A esperança, contudo, é uma força motriz importante. Temos que nos apegar a ela para minimizar as dores. No entanto, não basta essa atitude passiva de auto conforto. Ela também precisa ser combustível para atiçar a engenhosidade, a criatividade e nos levar a dar-nos as mãos em busca de soluções. Se e quando começarmos a fazer isso, aí sim, teremos entrado num verdadeiro ano novo, não um simples clone dos anos anteriores.
Que venha um produtivo, solidário e feliz ano novo, de fato!