Não sei se caso ou compro uma bicicleta…
Por: Cristina Vergnano
Inspirado no conto popular: “O conselho do doutor Doido”, recolhido por Câmara Cascudo em Contos tradicionais do Brasil, p. 254
Ele tinha tudo. Não podia queixar-se da vida. De vez em quando, porém, ficava encafifado com algo que eu costumo classificar como problema de Suécia.
Naquela manhã, acordou cismado. Achava que sua vida andava meio sem graça. Queria fazer algo para modificá-la. Mas… o quê?!? Pensou, pensou, e, no final, deu com a coisa.
– Já sei! Para mudar de vida, posso arrumar uma noiva. Tenho um visual maneiro e um monte de garotas chovendo na minha horta.
A ideia lhe pareceu boa e já ia saindo para escolher a companheira, quando parou diante da porta em dúvida.
– Uhmmmm… casar tem lá suas vantagens. Mas, por outro lado, a vida pode acabar ficando complicada. E se… de repente… não me caso coisa nenhuma? Melhor: compro uma bicicleta!
Por um momento, se imaginou rodando de bicicleta nova pelas ruas do bairro, todo contente e livre, com o vento roçando no rosto.
– Mas… será mesmo?!? – Pensou.
Coitado do infeliz!!!! Dizem que quem não tem problemas, arruma. E lá estava ele, perdido em considerações sobre o que seria melhor.
Justo naquele instante, o mais crucial, quando o desespero lhe comia as ideias, tocaram a campainha. Era um dos seus camaradas de bar e farras. Abriu-lhe a porta afobado, ansioso por ajuda. Tomou-o pelo braço e contou-lhe seu dilema.
O amigo o encarou meio surpreso, como quem não acredita no que escuta. Contudo, dado o desespero do companheiro, viu que a coisa era séria. Sugeriu que fosse consultar o seu avô. O velho era tido como muito sábio e ponderado. Com certeza encontraria uma forma de ajudá-lo em questão tão vital.
O moço agoniado não esperou nem mais um minuto. Correu para a casa do avô do seu camarada, que ficava na rua de baixo. Esbaforido, golpeou a porta. Contou ao ancião a história com detalhes: desde o momento em que acordara naquela manhã até a hora da visita.
O seu Nicolau sacudiu a cabeça e coçou o queixo pensativo. Ficou em silêncio, enquanto o jovem se contorcia na cadeira e esfregava as mãos. Depois de um tempo, disse:
– Veja bem, meu rapaz. Se conselho fosse bom, a gente vendia, não dava… Em todo o caso, como estou vendo a sua aflição em tema tão delicado, lhe digo só uma coisa: seja lá o que fizer, parece-me que sua vida não mudaria tanto. Bicicleta ou esposa têm para você a mesma parecença e, eu arriscaria dizer, valem tanto quanto suas outras preocupações.
Nosso protagonista, então, parou perplexo, olhando o interlocutor com anos de experiência. Agradeceu, se despediu e saiu de lá ainda matutando. Passou pela praça cheia de admiradoras lhe dando a maior bola, mas seguiu em frente. Virou a esquina e ignorou a loja de bicicletas. Acabou entrando de supetão numa livraria, onde passou o resto da tarde lendo e escolhendo livros.
Que delícia de texto!!!! Parabéns!!!!
Oi, Jake. Faz um tempinho, né?!
Que bom você ter gostado do conto! Acho os textos inspirados na nossa tradição popular (ou os recontos) muito interessantes, pois, ao mesmo tempo que trazem uma novidade, nos remetem a um saber coletivo e conformador de nosso modo de ser enquanto povo. A outra questão é como a escrita bebe, também, em fontes de nosso cotidiano particular. A expressão, por exemplo, “não sei se caso ou compro uma bicicleta”, é algo que meu marido diz às vezes. Sempre a achei pitoresca e agora chegou o momento de usá-la.
Bom ter você por aqui pelo ToV de novo. Volte sempre.Bjs.