Surrupiaram a nossa festa!
Por: Cristina Vergnano
Dizem que podemos avaliar a personalidade de alguém, ou seu estado de espírito, por meio da metáfora do copo meio cheio/meio vazio. Eu me considero uma pessoa otimista, mas, ultimamente, sinto-me dona de uma caneca bem mais para “meio vazia”, em especial nesta semana. Puxemos o fio do tempo para entender a questão.
Cresci durante a ditadura militar, numa família sem envolvimentos políticos (como, imagino, ocorria com a maioria dos brasileiros). Só bem mais velha, me dei conta do que esse período de nossa história representou, das profundas perdas e injustiças cometidas em nome de uma suposta defesa da nação. Uma característica da época era a presença constante de hinos, dentro e fora da escola, ademais das muitas propagandas governamentais acompanhadas de slogans e jingles. Havia, também, os desfiles militares e estudantis de 7 de setembro, com toda a pompa e circunstância, e as fitinhas verdes e amarelas presas com alfinete na lapela dos uniformes, na semana da pátria.
O fim do período ditatorial, com abertura política, eleições diretas e reflexões sobre o Brasil e seus problemas, trouxeram novos ares e atitudes, pondo em perspectiva crítica o que se havia vivido até então. As ingênuas brincadeiras infantis — nomear um presidente de “Garrafa Azul Média”, criar paródias para o hino à independência (“Japonês tem quatro filhos…”), cantar “Este é um país que vai pra frente” dando marcha ré — passaram a ser vistas não somente como atitudes irreverentes de criança, mas como formas de insurgência, mesmo subliminares. A gozação foi substituída por um olhar avaliativo do que significaram tanto o ufanismo governamental, quanto a despolitização popular.
Não digo com isso que os símbolos pátrios sejam desprovidos de relevância, nem que nutrir amor pela terra onde se nasceu seja alienação ou falta de criticidade. No entanto, todo bem-querer consciente deve vir acompanhado de ponderação e reconhecimento das falhas e carências, a fim de pavimentar o terreno para o crescimento.
Outro aspecto é: quando grupos se apropriam dos bens culturais e simbólicos de todo um povo, desvirtuando seus valores, associando-o a formas de prepotência e desmando, estamos diante de uma distorção. Aquelas e aqueles, cujos sentimentos se alinham ao direito, à liberdade responsável, ao cuidado, ao respeito, à igualdade e ao desenvolvimento de toda uma nação, ficam, de repente, apartados desses símbolos. Se veem diante de uma encruzilhada, pois, se os ostentam, podem ser associados aos princípios que condenam. Por outro lado, ao abandoná-los em função de suas crenças e coerência interna, sentem-se como exilados no próprio solo, entre sua própria gente.
O conflito se faz mais pungente neste ano de 2022, quando comemoramos o bicentenário da independência do Brasil. É óbvio que, se tomarmos como parâmetros a igualdade e a universalidade do bem-estar, nosso país tem ainda um longo caminho antes de se considerar plenamente liberto. Mesmo assim, seria possível festejar a trajetória iniciada há 200 anos, embora tal festa precisasse sempre acontecer sob a ótica da reflexão. Entre outros motivos, está o de nos terem vendido uma libertação pacífica, quando, na verdade, houve lutas intensas em várias regiões do país. Bem o digam Joana Angélica, Maria Quitéria, Maria Felipa e Bárbara de Alencar. De qualquer modo, se trata de uma data emblemática. Outro aniversário tão marcante não caberá na vida de muitos e muitas de nós. Portanto, sermos privados de vivenciá-la em sua plenitude cidadã, devido às apropriações indébitas que vêm crescendo em nosso meio, é uma forma de espoliação.
Como diz minha psicóloga, é preciso evitar entrar no movimento do mundo. Em outras palavras, se algo (lícito, bem entendido) nos é caro, devemos dar-lhe o valor e aproveitá-lo, independentemente das opiniões e atitudes alheias. Haja terapia para transmutar hipocrisia e despotismo em verdadeiro sentimento de pertença e brio consciente!