Digicrônicas

Dia de pelada

Por: Cristina Vergnano

Virei a esquina arrastando o carrinho de compras, entrei na minha rua e segui pelo asfalto. Depois de dois anos de reclusão pela pandemia, estranhei o peso. Olhei ressabiada para o volume meio disforme: os calombos dos produtos moldando o material sintético, o beiço do saco arreganhado, a cordinha de fechar a sua boca estirada e atada na alça metálica da estrutura, a tampa mal dando conta de ocultar o que estava por cima. Abaixei um pouco, cutuquei daqui e dali, ajeitei o que deu, centralizando o peso na base das rodinhas, suspirei e segui em frente.

À esquerda, o guardador da rua atacava sua marmita. À direita, na pracinha, um casal de adolescentes uniformizados dava vazão aos hormônios. O sol se refletia nas vidraças dos prédios e seu brilho acertava em cheio os meus olhos. O céu estava azul e uma brisa fresca balançava as árvores, provocando uma chuva de folhas amarelas.

De longe, vi uma garotada de colégio batendo bola no larguinho. Desviei, aproveitando uma rampa de garagem para subir na calçada. Nisso, a pelota deu um voo e teria batido em mim, se eu não tivesse mudado de rota. Acabou indo carimbar o capô de um carro. Imaginei o desgosto do proprietário. Os garotos, nem te ligo, seguiram adiante com a partida.

— Esses moleques não têm noção. Os carros vão ficar amassados. Vê se ali é lugar de jogar bola. — Comentou a funcionária do meu prédio.

— Devem ter saído cedo da aula e resolveram matar o tempo por aqui. Mas concordo que os donos dos veículos vão ficar fulos.

— Alguém tinha que proibir eles.

— Difícil. Além do mais, a rua é pública, né? E você sabia que, quando eu era adolescente, tinha até campeonato de futebol nesse larguinho?

— Ué, e dava? E os carros?

— Outros tempos… O pessoal estacionava ao longo da calçada e sobrava vaga. De qualquer maneira, se paravam aqui, nos dias de jogo, saíam.

— Devia ser um evento e tanto!

— Vinha muita gente. Eu tinha pena de quem morava nestes prédios aqui em volta, tamanha a barulheira. A gente ouvia a gritaria lá da pracinha. Eu morava praqueles lados na época. Começava cedo e durava o sábado inteiro.

— Mas era só a garotada?

— Que nada! O público era variado. Os times tinham uniforme, o campeonato era organizado por chaves e davam prêmios aos vencedores.

— Que legal!

— Você não pode ver agora, mas, naquele pedaço de asfalto, havia as marcas do campo pintadas e duas balizas de ferro.

— Coisa séria…

— Quando tudo acabou e os carros invadiram o espaço dia e noite, uma das balizas ainda ficou um tempo tombada ali no fundo, perto daquele muro. Depois sumiu. Não sei quem tirou.

— E a senhora não curtia?

— Olha, nunca fui de futebol. Na minha família ninguém ligava. Acho que, por isso, cresci sem gostar.

— Não tinha time nem nada? Nem morando tão perto do Maracanã?

— Pois é… fica perto, né? Mas, não.

— Fala sério! Então, a senhora nem vinha ver a festa?

— Ah, isso sim. Mas não de manhã, que eu não ia acordar cedo num sábado pra ver futebol.

— E torcia?

— Não me lembro. Faz tanto tempo! Imagino que, pelo menos, devia querer que os conhecidos fossem do time vencedor.

— Pois olha, vendo esta rua tão cheia de carro, faltando vaga pra morador, a gente nem acredita. Eu ia gostar de ter vivido nessa época.

— Tinha seu encanto. Bom, deixa eu entrar que ainda preciso guardar toda essa tranqueira.

— A senhora quer ajuda? Deixa que eu levo.

— Não precisa… mas, já que foi…

Entrei na portaria e agradeci por morar no térreo. Subir as escadas com aquele trambolho ia ser dose. Abri a porta, larguei as compras na cozinha e fui me trocar antes de arrumar tudo. Parei na janela lateral e olhei para fora. Vi uma ponta do larguinho, a bola ainda voando e golpeando com força os carros estacionados, a gritaria dos garotos em sua pelada improvisada. Por um momento, ali estavam as bandeirinhas, a tinta branca no chão delimitando o campo, os uniformes coloridos e a menina de cabelos curtos olhando tímida no meio da multidão.

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2 thoughts on “Dia de pelada

  • Ah, que delícia de texto! Parabéns! Viajei no tempo…quando jogava queimada com a garotada da rua…

    • Oi, Jake! Este texto tem um tempinho. Estava esperando revisão para ser publicado. Mais antigas, porém, foram as lembranças que a cena me trouxe à mente e propiciaram a criação. Gosto de crônicas de memória, pois são um resgate muitas vezes saboroso da vida da gente. Fico feliz que tenha apreciado. 🙂 Bjs.

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