A peste
Por: Cristina Vergnano
Aviso: Esta é uma história ficcional. Qualquer semelhança entre personagens, fatos (exceto as alterações na água no Rio de Janeiro) e lugares da crônica com pessoas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Todos os que me conhecem costumam afirmar que sou um tipo de pessoa meio desligada, alienada mesmo! Pode ser que tenham razão, mas, ao longo dos anos, fui abandonando o interesse pelo acompanhamento compulsivo de notícias em jornais impressos, na internet ou na tevê. Cheguei à conclusão de que havia muito de manipulação envolvida no processo de difusão das “informações”. Que os fatos, hoje, eram bem mais manifestação opinativa do veículo de divulgação (ou de algum “poder” a ele subjacente) do que apresentação de dados reais e isentos para que cada um avalie e conclua por si. Ou seja, em resumo, o que se difunde tem muito pouco de fato e de verdade, sendo dificílimo separar o trigo do joio.
Sendo assim, me reservei o direito de, ocasionalmente, limitar-me a olhar por alto as manchetes dos jornais pendurados nas bancas, ver algum vídeo que me mandassem e despertasse meu interesse, ou lançar um olhar de rabo de olho ao passar diante de uma televisão ligada num noticiário. Também, apesar de ter WhatsApp, principalmente para contato com familiares e amigos íntimos, é raro que compartilhe mensagens, reenvie postagens recebidas e leia muito do que me enviam em enxurradas. Portanto, na concepção contemporânea, sou um tipo esquisito e antissocial de ser humano (além de, obviamente, segundo a opinião geral, estar fora da realidade e sem conexão com o mundo).
Não me entendam mal! Tenho cultura e instrução suficientes para saber que é necessário estar a par do que se passa ao nosso redor. Meu comportamento é seletivo nesse particular e algo cético quanto à idoneidade de fontes e veracidade das informações. Apenas desconfio e prefiro, quando o tema me interessa, fazer longas e cuidadosas pesquisas, observando todos os lados que consiga, criticamente.
Pois bem… chegou-me, nesta semana, às mãos (digo, ao celular), uma notícia que me despertou a atenção. Veio por zap, mandada por alguém de confiança e muito chegado. Além deste particular, que já me predispunha a, ao menos, dar uma olhadinha, havia o fato de que falava do abastecimento de água. Convenhamos: o tema é do maior interesse, vital mesmo (ainda mais em pleno verão)! Daí, gastei um tempinho para ler a mensagem, algo longa.
O que primeiro me deixou (como diria…) “de ouvido em pé e com a pulga atrás da orelha”, foi aquele tom apocalíptico, um pouco vago e com um português questionável, típico das fake news. Tratava-se de um alerta aos moradores do Rio de Janeiro, entre os quais me incluo, sobre a qualidade da nossa água, distribuída pela empresa estatal. Segundo o texto, ela estaria seriamente contaminada, com algum vírus ou bactéria, fato confirmado por especialistas da Fiocruz (fundação ligada ao Ministério da Saúde brasileiro, cuja missão, segundo sua própria página – https://portal.fiocruz.br/fundacao – é “promover a saúde e o desenvolvimento social, gerar e difundir conhecimento científico e tecnológico, ser um agente da cidadania.”).
“Será?!?” – pensei… “O texto está tão truncado, com informações vagas, tom terrorista… Isso, em geral, indica fake.”
Bem… Eu não estava sentindo nada diferente na minha água, não tinha lido nada a respeito, nem tinha ouvido qualquer comentário dos vizinhos. Cabia, então, procurar outras fontes e tentar entender o problema e confirmar sua veracidade.
Busquei no “são Google”, nosso socorro de todas as horas, notícias a partir das palavras-chave “água contaminada”, “Rio de Janeiro”, “2020”. E não é que havia mesmo notícias e reportagens em diferentes jornais a respeito?!? E, muita gente estava reclamando nesse início de ano da água malcheirosa, com gosto ruim e turva. Alguns especialistas se posicionaram sobre o tema, afirmando que, sim, poderia haver risco, apesar de o órgão responsável dizer que nada estava fora dos parâmetros de saúde estabelecidos. Tais autoridades especializadas davam algumas orientações a respeito, para os casos em que a água estivesse com essas características de inadequação, sugerindo diferentes comportamentos, segundo o grau de alteração em seu estado. Então, era fato que algo estava ocorrendo…
Comecei a sentir certa preocupação… Fui à cozinha, abri a torneira e despejei água em um copo de vidro bem limpo. Nada estranho. A água saiu clarinha, sem cheiros ou gostos esquisitos. Tenho mais de um sistema de filtragem que conduz o líquido dos tubos de entrada do apartamento ao filtro com compressor, que me oferece água limpa e gelada para beber. Também havia instalado outro filtro na pia da cozinha, para lavar legumes, frutas e verduras. Todos com o famoso carvão ativado! Talvez fosse por isso… Mas, no banheiro, sem tais cuidados, a água saiu igualmente límpida. Então, resolvi que estava tudo normal por aqui e que eu não entraria na loucura da corrida pelas garrafas de água mineral, como li que estava ocorrendo.
Saí do apartamento, como sempre, após o café da manhã, para minhas atividades diárias e para o trabalho. Na rua, observei uma inusual movimentação de bicicletas e carrinhos de entrega carregados de garrafas de água mineral. O mesmo ocorria nas saídas dos supermercados, com indivíduos abraçando volumes fechados com 6 ou 12 garrafas de litro e meio, para colocá-los nas malas dos carros particulares, táxis e Uber, ou simplesmente arcando com tamanho peso ao entrar no ônibus, ou sair arrastando-os em sacolas e carrinhos de feira pelas calçadas.
“Hummm – pensei com meus botões – a coisa está ficando intensa!!!!” “Até onde irá?”
Na hora do almoço, nos restaurantes, as conversas nas mesas refletiam a preocupação geral. “Você viu o que deu no jornal?” – dizia um. “Aumentaram as entradas nos postos de saúde e UPAs de gente intoxicada e com forte diarreia!” “Um total descaso das autoridades” – comentava outro em resposta. “Só vão fazer algo quando começar a morrer gente!” “Por isso mesmo que eu já corri para fazer meu estoque de água mineral. Não bebo outra coisa!”- completou uma moça excitada.
Por um momento, até me esqueci do meu almoço que começava a esfriar no prato e do tempo limitado que eu tinha para comer antes de voltar ao trabalho. “Bem… casos de diarreia no verão escaldante da cidade era algo até comum…” – pensei… O vozerio crescia, os rostos se alteravam, a indignação era patente, assim como um não sei quê de algo mais… “Seria medo?” Enfim… acabei de almoçar, entrei na fila, paguei minha conta e rumei apressadamente para o escritório.
Retomei minhas atividades sem pensar mais nas conversas paralelas durante o almoço. Ia tudo ok, até a hora do intervalo do cafezinho. Fui à cantina da empresa onde vários colegas estavam no seu horário de intervalo. Passei por uma mesa e ouvi: “Fui até o mercado na hora do almoço e não tinha mais nem uma garrafa de água mineral. Imagine minha angústia!!!!” A resposta veio em seguida: “Não se estresse! No depósito de bebidas você encontra fácil! Seu Joaquim está sempre muito bem abastecido!” “Ih, cara!!!!” – meteu-se outro na conversa. “Passei lá hoje. Os preços estão pela hora da morte!”
“Aff!” – pensei. “Tem sempre alguém querendo lucrar com a desgraça alheia. Que falta de consideração!!!!” Mas preferi não me meter, nem expressar a minha opinião. As pessoas já pareciam estressadas o que bastava. Eu é que não pretendia cair nessa!
No fim do dia, fiz meu backup, desliguei o computador, guardei minhas coisas, tranquei a gaveta e saí. No elevador, a mesma agitação e tema de conversa. Mantive meu silêncio.
Na banca de jornal em frente à empresa, olhei de relance a manchete e a introdução de um jornal de grande circulação popular… Ali havia algo como: “Não vamos cair no conto do senhor diretor da companhia de água! Claro que há problemas que estão sendo encobertos. O povo não é tolo. Queremos providências.” “Ai, meu pai!!!!” – sussurrei entre um suspiro. “Já não basta toda a agitação e estado negativo de ânimo? Será mesmo que a imprensa precisa botar mais lenha na fogueira?”
Já mais adiante na rua, passei pelo supermercado. Sabia que faltavam umas coisinhas no apartamento e resolvi arriscar. Como não era início de mês e, em janeiro, muita gente está fora de férias, torcia para que as coisas estivessem tranquilas, sem muitas filas. Não estava com disposição para a tortura da espera para pagar. Mas, não tinha quem fizesse as compras por mim… Então, era resignar-me e enfrentar!
O que presenciei foi bizarro. As pessoas se acotovelavam e amontoavam diante das prateleiras e engradados de garrafas de água. As caras estavam contorcidas. Entre empurrões e xingamentos, a massa revoltada lutava por suas garrafas de água “não contaminada”. De repente, me senti no cenário de um daqueles filmes pós-apocalípticos, quando a sociedade, diante de um grande holocausto, se brutaliza e assume sem pudores a lei do cada um por si. Desisti da minha compra e saí rapidamente dali. Poderia comprar o mais urgente num mercadinho perto de casa. Seria um pouco mais caro, porém, menos agoniante.
Sem chance!!! Os ânimos já se haviam incendiado. Vi um bando abalroando uma senhora e levando seus dois garrafões de águam com carrinho de feira e tudo. Eram uns tipos mal-encarados. Como tomaram o caminho de uma comunidade, imaginei que iriam vender o produto do roubo a preços extorsivos por lá. Coitada da população sujeita a tais marginais! Afinal, a maioria era boa gente…
E não foi só isso! Os pobres do Seu Correia e da Dona Amélia, lutavam desesperados para fechar a porta do seu mercadinho!!!! Bandos forçavam a entrada e se lançavam furiosos sobre as prateleiras dos garrafões do precioso líquido. Não eram bandidos. Apenas gente comum, de todas as idades, transtornados pela possibilidade de adoecerem ou morrerem com a “água envenenada”. O imperativo da sobrevivência gritava a altos brados, mais forte. Que ética nada! Que lei, qual o quê! É cada um por si (de novo!). Na confusão, uns ainda aproveitaram para se apropriar de outros bens e saírem sem pagar.
Eu estava me sentindo cada vez com mais vergonha, embaraço, desânimo e desilusão. Como bastava tão pouco para que retornássemos à barbárie! Foi nesse exato momento que a coisa acabou se complicando de vez! Descendo a rua, vinha um “arrastão policial”. Guarda municipal, PMs, batalhão de choque, camburões, caveirões… E a agressão começou a comer solta!
Eu, que estava ali apenas observando, acabei levando a raspa do tacho de spray de pimenta da polícia, alguma bala de borracha e uma pedrada da turba enfurecida e acuada. Com a testa sangrando, esgueirei-me para casa, abri correndo o portão de entrada, tranquei-o atrás de mim e subi, não sem certa tontura, as escadas. Entrei no apartamento, joguei a chave longe, larguei-me no sofá e adormeci ali mesmo.
No dia seguinte, as marcas da agressão, do enfurecimento irracional da massa, da ação agressiva das autoridades ainda eram visíveis nas ruas e estabelecimentos. Em todos os telejornais e nas manchetes, se via a lamentação pelos atos bárbaros de todos os atores dessa triste peça. Nos mesmos veículos, estavam relatórios da companhia de abastecimento de água, palavra das autoridades governamentais e confirmações da imprensa, garantindo que não havia nenhuma peste, nem contaminação. A população poderia relaxar e recuperar a paz e a ordem. O gosto estranho era causado por umas algas e não afetava a saúde. As notícias tinham sido exageradas e saído do controle.
Vi tudo isso com um olhar muito triste. De fato, podia até não haver contaminação da água. Mas a peste… essa tinha havido, sim. E estávamos todos infectados. Era uma doença atávica, que residia silenciosa no mais profundo de nosso ser, de cada um de nós, esperando para eclodir e nos arrastar para a inexorável destruição da verdadeira barbárie. Uma realidade bárbara alimentada por nosso egoísmo, por nossa falta de consideração pelo outro, pela falta de equilíbrio e raciocínio, que nos tornava mais baixos que os animais irracionais. Sacudi a cabeça, contorci o corpo moído da noite mal dormida, cheia de pesadelos. Fui para o banheiro, finalmente, tratar a ferida da “aventura” do enfrentamento com a massa e os policiais. Suspirei, tomei um banho, me arrumei e parti para viver um novo dia. Na minha mente, a certeza de que o caos adormecia para esperar a próxima oportunidade de emergir.
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