Tempos de mudança: ainda a respeito da Covid-19
Por: Cristina Vergnano
Sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol
(“Nada será como antes”, 1972; Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
Meu marido e eu estávamos conversando por esses dias a respeito das mudanças que estão vindo na esteira da Covid-19. Meu cunhado tinha dito, numa chamada telefônica, que “o coronavírus será um divisor de águas”. Ou seja, parafraseando Milton Nascimento, ao que parece, “nada será como antes, amanhã” …
O que venho observando são orientações diversas, tendências que, mesmo não sendo exatamente conflitantes, apontam para soluções de vida distintas. Só o futuro e nossas pegadas nos mostrarão o que está por vir, o que está sendo e para ser por nós construído.
Um aspecto que parece vir para ficar é a massiva, extensa e universal informatização. Por exemplo, a lei que regulamentava a telemedicina já estava circulando há algum tempo, sem que se decidisse nada em definitivo sobre ela. Agora, com uma simples e rápida canetada, foi tudo regulamentado. Por força da necessidade, atendimentos médicos e psicológicos foram autorizados via Skype. Bancas de defesa de mestrado e doutorado, bem como reuniões acadêmicas, estão-se adaptando e adotando soluções remotas em salas de videoconferência. O homeoffice virou realidade quase geral. Nos casos de empresas cujas tarefas podem ser feitas sem a presença física dos envolvidos, a já complicada situação de estar on-line a qualquer momento (e a todo o momento) está-se generalizando. Com isso, o trabalho é feito, contudo, invade as casas e atropela (se não soubermos impor limites) o espaço privado e as vidas íntimas das pessoas.
O que preocupa, também, é o fato de que essa generalização informatizada não consegue alcançar a todos de verdade. Ao menos, não os alcança com igual nível. O que diremos de todos aqueles e aquelas que não possuem computador em casa, nem impressora e cujo acesso à internet está limitado ao celular e aos planos pré-pagos? E quanto à falta de uma educação que insira plenamente as pessoas no mundo digital, de forma crítica, consciente e autônoma? Porque não estamos falando apenas de YouTube, Facebook, Instagram ou WhatsApp. Falamos de imposto de renda, de compras on-line, de relacionamento bancário, de consultas, petições e reclamações, de trabalho e de estudo. Em outras palavras, tratamos de práticas que requerem alto grau de letramento, nem sempre desenvolvido nos membros de nossa sociedade.
Além dessas mudanças, nunca foi tão intenso o fluxo de entregas de todos os tipos: supermercados, lojas de conveniência, farmácias, hortifrútis, com pedidos remotos via telefone ou sites… Quase impossível atender a tanta demanda. Bom, útil, mas exaustivo e arriscado para os entregadores, sem dúvida.
São todas opções para proteção, para controle das linhas de contágio. Atitude mandatória no momento, claro, mas qual será o limite? Nesse sentido, graças damos pela existência da internet 2.0 e pelos recursos tecnológicos que conseguimos construir. Nunca, talvez, a ideia de um mundo como aldeia global foi tão bem percebida. No entanto… depois que a crise passar, o que retornará aos modelos prévios e o que seguirá na nova formatação? Será que não haverá, em nome da economia, um enxugamento dos quadros de pessoal e uma ampliação das horas reais de trabalho, diluídas nesse cotidiano a distância? Uma possível consequência da redução de postos regulares de trabalho será o aumento da informalidade e do chamado “empreendedorismo”. Mas isso traz consigo um risco que já estamos constatando. Num caso de impedimento, esses trabalhadores ficam impossibilitados de ganhar a vida. Como não têm suporte previdenciário, padecerão muitas dificuldades, que, aliás, já começam a ocorrer. Acabei de ver o anúncio de um abaixo assinado no Avaaz, solicitando a suspensão das contas e dos impostos, pois muitos estão deixando de receber seu sustento ao ficarem em casa, sem sair para trabalhar, a fim de guardar a quarentena. Em resumo, que efeito a longo prazo a informatização (não planejada previamente e imposta numa velocidade atroz) terá nos empregos físicos, não virtuais, depois que a crise terminar? E nas defesas de pós-graduação, nos apoios a viagens e atividades científicas, na educação e nos atendimentos de saúde? Só o futuro nos dirá…
Ao princípio, contudo, eu havia citado a percepção de orientações diversas de vida. Pois bem… em outra ótica sobre a questão, fora do tema informático, surgem muitas mensagens, falas e depoimentos clamando pela retomada da nossa capacidade de conviver. Muito se escuta sobre o fato que esse “encarceramento” nas casas está deixando manifesto: nossa atual incapacidade de viver com os demais, de negociar espaços e ideias, de fazer trocas saudáveis, de reaprender a ouvir e, inclusive, de ficar pacificamente sozinhos conosco mesmos. No entanto, também tratam de mostrar a grande oportunidade que nasce dessa situação indesejada, mas que temos que acolher de qualquer maneira. Ou seja, a chance que temos de resgatar-nos enquanto seres humanos e sociais. De usufruirmos do tempo de forma criativa, produtiva e prazerosa. De voltarmos o olhar para nossas crianças e saber, de novo, estar e brincar com elas. De ver e escutar os idosos com quem vivemos (porque os que estão mais distantes, para sua própria segurança, devemos contatar de longe) com doçura, paciência, entendendo, ainda que por detrás de certa perda de lucidez, a sabedoria que têm para compartilhar conosco.
Às vezes, rindo para não chorar, escutei frases inusitadas nas últimas semanas. Coisas do tipo: “ai, o que fazer com meus filhos que não vão para a escola e estarão em casa comigo o tempo todo?”; “estou desesperado de tédio!”; “só ficar em aqui trancado é terrível!”; “saí para ir ao mercado e foi um alívio…” E começam a pipocar, nos zaps da vida, receitas para aguentar o tédio e a quarentena, sites com atividades para ocupar-se, empresas que disponibilizam cursos, vídeos, programas de tv, contação de histórias etc a fim de que o povo se ocupe e não “tenha um treco”.
Ora… me pergunto, sinceramente, como isso é possível… Estou aposentada, mas ainda oriento na pós-graduação. Então, tenho alguns trabalhos para ler. Escrevo para este blog, o que requer tempo, concentração e trabalho. Sem poder contar com a moça que trabalha aqui em casa (optamos por lhe pedir que não viesse, a fim de resguardar a saúde dela e a nossa), todas as mundanas tarefas domésticas diárias têm que ser feitas por nós, meu marido e eu. Então, gasta-se muito com tirar pó, varrer a casa, lavar roupa e louça, fazer comida, arrumar a cozinha, limpar o banheiro, molhar as plantas, jogar lixo fora etc, etc, etc. Sem contar com outras mil atividades pessoais: ler, ouvir música, descansar, dormir, comer, tomar banho, tomar remédios, ver algo na televisão, conversar com amigos e familiares que estão igualmente bloqueados, rezar, compartilhar o tempo e o espaço com o companheiro (para aqueles que não estão sozinhos, claro). Enfim… não consegui ainda entender de onde pode surgir o tédio e a falta do que fazer. Salvo, talvez, pelo peso psicológico advindo de que estamos obrigados a nos “retirarmos do mundo em prisão domiciliar” e porque nos bate uma certa apreensão e medo pelo que pode suceder…
Vejam bem! As sugestões de atividades compartilhadas, eu as acho ótimas. Entre outras coisas, mostra como podemos aproximarmo-nos uns dos outros, pensar nos demais, mesmo estando a distância e isolados. O isolamento social que se requer agora é físico, mas não precisa ser um isolamento real, de fato (sobre isso, sugiro a leitura da crônica “Na quarentena: isolados sim, sozinhos nunca!”, de Bessa, em http://taquiprati.com.br/cronica/1514-na-quarentena-isolados-sim-sozinhos-nunca). Basta que façamos isso: encontremos meios de nos aproximarmos, de compartilhar. A saída está em buscar novas formas de relacionamento, mas sempre priorizando a interação humana.
A pandemia do cornoavírus parece ter colocado o mundo em xeque. Está assustando, mostrando nossa fragilidade, confrontando-nos com nossos medos e ansiedades, com nossas capacidades perdidas. Estamos mesmo vivendo uma nova era! Podemos deixar-nos levar pela onda tecnicista e “informatizadora”, entregando de vez nossas últimas gotas de humanidade, abdicando dos contatos reais e entrando em mundos virtuais, sem nos preocuparmos se todos e todas poderão fazer parte deles, com iguais benefícios. Ou podemos voltar a trilhar a estrada de nossa essência, incorporando todo o potencial que a tecnologia nos oferece, sem nos perdermos no processo, nem nos afastarmos uns dos outros. Dependerá de nós a escolha dos melhores caminhos, caminhos libertadores e de crescimento individual e social. Como diria Antonio Machado, o poeta espanhol de Sevilha, “caminante, no hay camino,/ se hace camino al andar” (caminhante, não há caminho,/ se faz caminho ao andar).