Série Reflexões na Semana Santa: Sacrifício e entrega como lição para o caminho do amor
Por Cristina Vergnano
Faz cerca de 2.000 anos, segundo registros históricos e bíblicos, que Jesus de Nazaré foi preso, torturado e crucificado, em Jerusalém, sob o mandato de Pôncio Pilatos, governador romano da Judeia. A condenação teve uma orquestração complexa, que envolveu questões políticas e religiosas dos representantes locais. E, quando observamos os detalhes do fato, segundo os relatos dos Evangelhos, ficamos horrorizados com a brutalidade e a falta de sentido que encerram. Como é possível que um homem que “andou fazendo o bem” (At 10,38) sofresse tal castigo, uma morte tão degradante?
Mas, se pensarmos com cuidado, a falta de sentido e o horror que tanto nos comovem convivem conosco ainda hoje. E, mesmo assim, parecemos, na maioria das vezes, refratários ao pavor e ignomínia que representam. O próprio Jesus nos ensinou diversas vezes, por meio de seus exemplos e parábolas, que somos todos irmãos, que devemos amar-nos uns aos outros como a nós mesmos, que precisamos ser solidários, compassivos, disponíveis para o serviço, rápidos e constantes para perdoar, resistentes a julgar. E, apesar disso, da repulsa que o tratamento por Ele recebido nos causa e da beleza de suas lições amorosas, permanecemos indiferentes e cegos à Sua presença no outro.
No contexto do Tríduo Pascal, a Sexta-feira Santa é dia de recolhimento, de jejum, de oração, de reflexão. Embora rememore todo o percurso da Paixão, até a morte dolorosa de Cristo na cruz, não nos incita à tristeza. Afinal, temos a certeza de sua ressurreição, de sua vitória sobre a morte definitiva. Portanto, o sentido da circunspecção desta data e de suas celebrações não está no luto por um morto, mas na necessidade de pensarmos sobre as dimensões de seu sacrifício e, em especial, de seus ensinamentos. Mais do que tudo, no que isso demanda de nós.
A dor e a humilhação de Jesus são as dores, humilhações, maus-tratos, desprezos, desrespeitos de cada pessoa que habita na terra, frutos de nossos vícios e egoísmos. Cada um dos membros do corpo, que tem nele sua função própria (diferente das demais, mas igualmente relevante) e que não pode viver isolado, é importante e merece respeito e amor (1 Cor 12, 12-26). Quantas vezes banalizamos o sofrimento e a morte dos demais? Quantas vezes olhamos para nosso próprio umbigo e deixamos de considerar as necessidades do irmão?
Quando paramos para ler e refletir sobre o compromisso que Jesus solicitava de seus discípulos – vender tudo, dar aos pobres e segui-Lo (Mc 10, 21); amar os inimigos e fazer o bem a quem nos odeia (Mt 5,44); ser perfeitos, como o Pai celeste é perfeito (Mt 5, 48), por exemplo – concluímos que a tarefa é por demais pesada. Diríamos, mesmo, inatingível! Mas o próprio Jesus afirmou: “Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve”(Mt 11, 29-30). Também, nos explicou o segredo dessa leveza: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22, 39, citando Lv 19,18). E, ainda: “Dou-vos um novo mandamento: Amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13, 34).
Ou seja, a chave de tudo está no amor. Em perceber-se como parte do todo, irmanado com os demais. E, se todos somos iguais em nossas diferenças, então não há maiores ou menores, não havendo, portanto, necessidade de subjugar, humilhar ou oprimir. Mais, ainda! Se o parâmetro formos nós mesmos, basta pensar em todas as coisas que nos escandalizariam, nos fariam sofrer, nos matariam e evitar cometê-las com os demais. Ver no outro, enfim, uma imagem desse Jesus que amamos e por quem nos condoemos ao reviver sua Paixão. Ao vê-la, dedicar-lhe o carinho que dedicaríamos ao próprio Cristo, sem reservas.
Ora, neste tempo de pandemia, tenho observado comportamentos bastante alarmantes, que ferem este princípio do amor. Falo da banalização da morte (ou, melhor dizendo, da vida!), da quase eugenia, que admite separar aqueles que podem ser sacrificados em detrimento dos demais. E os argumentos que tentam reforçar essa tese baseiam-se no suposto bem da maioria, na preponderância dos valores econômicos que precisam ser protegidos e preservados “em nome do bem comum!”.
Não fôssemos seres altamente criativos para encontrar caminhos a fim de solucionar crises, até poderíamos acreditar que o sacrifício de alguns justificaria a salvação de muitos… Quem somos, contudo, nós para fazer o julgamento justo e adequado sobre a correção de tal decisão? Quem seriam os afetados mais prováveis da determinação de protegermos a economia ao invés dos indivíduos? Os idosos, os doentes, os pobres, aqueles mais frágeis em nossa sociedade… E, com que propósito? Afinal, em tempos de era digital, temos ferramentas bastante eficazes para encontrar caminhos de reinventar a economia. Perdas, sempre haverá, não cabem dúvidas. No entanto, no passado, nações se reergueram, mais fortes e unidas, após grandes guerras, depressões econômicas, desastres naturais, pestes. E isso, com menos recursos! Mesmo havendo muitas mortes, estas foram e são choradas, lamentadas, nunca banalizadas como algo inevitável que deve mesmo ocorrer com alguns.
A lógica de que para fazer uma fritada é preciso quebrar alguns ovos precisa ser apagada de nossas mentes; tem que causar repúdio em nossas consciências. O parâmetro precisa ser “amar ao próximo como a si mesmo”. Ou seja, ninguém, de fato, gostaria de ver-se calçando o sapato daqueles que devem morrer em detrimento (supostamente) da maioria. Se isso vale para cada um de nós, por que não valeria para os “condenados” do discurso simplista da defesa de uma economia frágil, que só pode existir no formato que até então vem sendo adotado? De outro modo, estaremos condenando Jesus, uma vez mais, ao martírio sem justificativa.