Um medo que gostaríamos de esquecer…
Por: Cristina Vergnano
Tudo começou quando decidimos, aqui em casa, fazer o teste para IGG da covid-19, um exame de sangue para detectar anticorpos para a doença. Nem tínhamos certeza se havíamos tido a virose, mas, como apresentamos alguns sintomas aproximados e minha mãe morreu disso, pensamos que seria possível… O impacto veio ao tomarmos ciência do resultado: “não reagente”. Admito: só impactou porque a expectativa favorável (infundada) era grande! Continuamos, assim, sem saber ao certo se havíamos sido contaminados e sofrido uma modalidade muito fraca da covid, ou não. Sabíamos, porém, com quase 100% de certeza, que não possuíamos os anticorpos protetores. A partir daí, minha mente, após um certo crack de pânico, começou a refletir sobre uma série de coisas. A primeira delas se relacionou à memória; a segunda, ao medo.
Quando abordamos memória no âmbito da cognição, consideramos, entre outras coisas, que o ser humano tem, por assim dizer, vários tipos de memória. Quanto ao seu conteúdo, podemos falar daquelas procedimentais, referentes a como fazemos coisas, e das declarativas, relacionadas a dados, fatos, ideias. Quanto à sua duração, temos a memória imediata, a de curto prazo (ou de trabalho) e a de longo prazo. Aquela dura segundos e é logo descartada. A segunda, como o próprio nome denuncia, dura pouco e pode ser perdida em face a alguma agressão ao cérebro. Recebemos a informação por meio dos diferentes sentidos, a usamos e descartamos, se não for muito relevante para nós ou utilizada repetidamente. A de longo prazo, ao contrário, conserva, codificadas sob a forma dos chamados esquemas, as informações que foram consideradas dignas de serem guardadas em nosso cérebro e que podem ser acessadas reiteradas vezes, sempre que necessário.
A memória tem forte relevância para o processo de aprendizagem e também para nossa constituição como seres humanos. Mas, nos dias de hoje, tão tomados pelas tecnologias digitais em diferentes âmbitos, talvez estejamos observando prejuízos à memória. Ao menos, há estudos que caminham nessa direção e trazem o assunto à baila. Já nos custa saber números de telefone, datas de aniversário, endereços de cor e salteado… Antes parecia ser algo tão natural!!!
E por que trago isso à discussão, se o tema do artigo antecipado pelo meu título é “medo”? Medo de quê? De ficarmos desmemoriados? Não!!!… Esperem só um pouquinho que já chego lá!
Pois bem… A gente costuma ouvir dizer que o brasileiro tem memória curta. E, também, que deveríamos lembrar sempre dos erros do passado para não voltar a repeti-los. Parece um sábio conselho. Contudo… pensemos por um momento…
Na nossa memória, conservamos informações relacionadas a procedimentos, o que é extremamente útil, pois nos permite seguir realizando todas aquelas coisas que aprendemos e que são necessárias à nossa convivência e sobrevivência neste mundo. Perder tais memórias, portanto, seria um problema bastante significativo que afetaria a independência do indivíduo.
Além da procedimental, temos a memória declarativa, como já citei antes, referente a datas, acontecimentos de maneira geral, nomes… Quando pensamos na conservação dos fatos históricos para nos conduzirmos de forma mais produtiva, constatamos o quão relevante é a memória para a coletividade, não só para os indivíduos. Escolhas políticas e econômicas, por exemplo, já geraram ao longo do tempo muitos conflitos e trouxeram grandes sofrimentos e destruição. Faria parte de um aprendizado importante levar essas memórias em conta e confrontá-las com acontecimentos recentes e presentes para nortear decisões, evitando o retorno ao caos vivido no passado. Os mais velhos costumam chamar a isso, sabedoria. Retirar das experiências anteriores o embasamento para escolhas atuais, visando sempre ao bem comum, concordo, é muito sábio.
Eu, no entanto, incluiria ainda neste bojo das memórias declarativas um conjunto que prefiro chamar de memórias emocionais. Para mim, são as relacionadas não aos fatos em si, mas aos sentimentos e sensações que aqueles fomentam em nós e que ficam igualmente gravados em nosso cérebro. E estas podem ser agradáveis ou desagradáveis. As primeiras queremos lembrar para sempre. Já as segundas, preferimos esquecê-las, perdê-las no mais profundo de nossas mentes, para nunca mais encontrá-las ou vivenciá-las.
Agora chego à nossa situação atual e à minha reação (algo explosiva) em face ao resultado não reagente de meu teste de IGG para covid-19. Já escutei muitas pessoas comentando que se sentem numa realidade surreal, paralela. Que nunca poderiam imaginar-se trancadas em casa por meses a fio em função de uma pandemia. Que é assustador pensar em quanta gente está morrendo por algo tão pequeno, invisível e com uma estrutura tão simples. Um vírus fazendo tamanho estrago, como nas histórias que ouvimos a respeito da peste negra na Idade Média, da epidemia de cólera em meados do século XIX, ou da gripe espanhola no início do século XX. Mas (puxa vida!!!!), estamos no século XXI!!!!! De que nos valem tanta ciência e tanto avanço tecnológico?!?
Aí está! Horrores como os das grandes guerras mundiais do século XX, de extensas catástrofes naturais e dessas epidemias da era moderna, apesar de historicamente recentes, parecem ter caído no esquecimento emocional. Conhecemos os fatos, mas não os sentimos. Talvez por isso, o que nem é tanta novidade (o vírus pode ser novo, a noção de epidemia/pandemia e seus efeitos, porém, não o são) esteja causando uma reação tão forte, como de algo impensado. De cima de nossos avanços, pensamos no absurdo que é estarmos fragilizados a este ponto, submetidos à imobilidade, fadados a ter que manter distância e esperar que se descubra uma cura, uma vacina, ou que todos se contaminem e criem resistência (os que sobreviverem, claro).
O medo que vivemos hoje é fruto da frustração, por vermos nossas expectativas de imunidade destroçadas (o que ocorreu comigo ante o resultado do teste) e por termos que nos submeter ao isolamento sem possibilidade ou poder de reação. É fruto, também, da incerteza, pois ninguém sabe ao certo com o que estamos lidando, nem como vencê-lo, por quanto tempo ainda viveremos assim, ou quando isso tudo acabará.
Alguns, têm reagido à pandemia simplesmente “chutando o balde”. Ou seja, saem (e pronto!), interagem com todos frente a frente, não usam máscaras e jogam roleta russa, crendo que há uma boa chance de serem imunes ou resistentes à doença. Que a morte acontecerá para outros mais vulneráveis. Que ninguém dura para sempre. Que o contágio generalizado trará a imunidade e o fim da crise (a tal imunidade de rebanho).
Muitos, ao contrário, se mantêm trancados em suas casas, vão à rua somente quando é imprescindível, sempre protegidos com máscaras, às vezes luvas, e munidos de álcool gel, enquanto acompanham os acontecimentos. Durante o processo, sofrem os efeitos avassaladores do isolamento social e do confinamento. Por isso, temos observado um crescimento de distúrbios psicológicos e psiquiátricos variados: depressão, ansiedade, irregularidades no sono, para citar alguns…
Creio, assim, pessoalmente, que a raiz de parte dos nossos problemas atuais está no medo. Este sentimento é uma moeda de duas faces. Por um lado, temos o seu aspecto positivo. Ele nos mantém alertas, ajuda-nos a reagir diante do perigo, despeja a adrenalina demandada para a reação rápida ante as ameaças, impede-nos de correr riscos desnecessários. Mas, por outro, principalmente ao tornar-se crônico e continuado, nos leva ao limite, afeta nossa sanidade, prejudica o sono, o raciocínio, deságua em uma série de efeitos psicossomáticos daninhos.
Vivemos (todo o mundo, na verdade) numa corda bamba desde o início deste ano de 2020. É o famoso: “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Há um delicadíssimo equilíbrio que precisa ser mantido e solucionado com brevidade. Por um lado, cabe preservar a vida contra os ataques do vírus e as consequentes e abundantes mortes que provoca e, ao mesmo tempo, por outro, contornar eficientemente a crise econômica que ameaça a sobrevivência de indivíduos e empresas. Não há resposta fácil. Não se pode tomar a questão de modo leviano, sob pena de causar estragos ainda maiores. E tudo isso provoca um medo terrível! Não fruto de algo imaginário, mas, sim, de uma realidade bem tangível. Ele é tão real e concreto que virou o terceiro elemento dessa ameaça. Para além da doença viral que mata ou maltrata, para além do risco de falência ou penúria, está o descontrole emocional e mental provocado por esse monstro imaterial que surge nas mentes e nos corações do próprio ser humano.
E, se afastarmos os fantasmas da enfermidade, da morte, da falta de dinheiro, emprego, comida e bens, ainda podemos contar com a desconcertante dúvida: “como será o amanhã?” Não nos reconhecermos mais, não vermos nossa vida com olhos familiares, estranharmos nossas próprias imagens e ações, termos que adotar novos hábitos para sobreviver… Isso também dá medo… Reinventarmo-nos e combater esse sentimento prostrante: esta pode ser a vacina que também precisamos criar e tomar com urgência!