Difícil recomeço
Por: Cristina Vergnano
A covid-19, como o próprio nome indica, surgiu no ano 2019, na China: uma síndrome respiratória aguda grave (SARS), causada pelo novo coronavírus, o sars-cov-2. Foi somente em março de 2020, porém, que a OMS declarou tratar-se de uma pandemia. Desde seu surgimento, o mundo enfrentou um enorme número de óbitos, internações, crises de suprimentos hospitalares, vagas em leitos e pessoal para cuidado aos doentes, lockdowns, retração nas economias, desemprego, fome. Isolamento social, máscaras, luvas e álcool gel passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas como formas de evitar o contágio. Ao sofrimento advindo das perdas de vidas, se somavam aqueles causados pela depressão gerada por distanciamento de amigos e familiares, pela tensão relacionada ao trabalho e estudo remotos, por sentimento de medo e incerteza quanto ao futuro e pelas carências financeiras, as quais também provocavam, por sua vez, dor e morte, em muitos casos.
A busca por formas de tratamento que suavizassem os efeitos da doença, promovendo a cura, e a luta pela produção de vacinas para proteger a população mundial foram intensas. Em dezembro de 2020, num tempo recorde, foi iniciada a vacinação. Aqui no Brasil, a Anvisa aprovou o uso emergencial da CoronaVac e da Vacina de Oxford em 17 de janeiro de 2021, mês em que, por fim, começou a imunização em nosso país.
O processo não ocorreu sem alguns conflitos sobre o acerto ou erro de determinadas terapias para o tratamento da covid, ou sobre a confiabilidade das vacinas. O tempo, contudo, foi passando e a vacinação no Brasil avançou, com melhora no panorama da epidemia. Primeira e segunda doses, reforço e vacina infantil vêm sendo distribuídos segundo calendários oficiais, embora devamos admitir que os números da procura pelos imunizantes, crescentes a princípio, começam a mostrar certa diminuição. O otimismo, ao contrário, parece aumentar. E, sem dúvida, vemos motivos para regozijo, pois as mortes e internações com casos graves caíram de modo acentuado e a economia aparenta ganhar fôlego.
Como reflexos dessa melhora no quadro da pandemia, começamos a observar o término de medidas restritivas, que já vinham sendo minimizadas à medida em que avançava o programa de vacinação. Em 07 de março de 2022, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, suspendeu a obrigatoriedade do uso de máscaras, tanto em locais abertos, quanto fechados. Esta decisão foi sendo tomada, também, pelo executivo de diferentes cidades e estados do país. Em 22 de abril, o Ministério da Saúde declarou o fim da emergência em saúde pública de importância nacional pela Covid-19. E, em 25 de abril, aqui no Rio, o prefeito encerrou a exigência de passaporte vacinal, segundo ele, seguindo a orientação do comitê científico que assessora a prefeitura. No fluxo dessas mudanças, além da abertura de bares, restaurantes, casas de espetáculo e eventos desportivos e culturais diversos, tivemos o carnaval fora de época (não um acontecimento inédito no Brasil), com os tão esperados desfiles das escolas de samba, durante o feriadão de Tiradentes. A festa não ocorreu apenas em nossa cidade, no Sambódromo da Sapucaí, mas em São Paulo e outras localidades do país.
Mas, afinal, como esse cenário foi e está sendo recebido pela população? Logo que se determinou a liberação do uso das máscaras, ainda era possível ver muita gente utilizando o acessório no Rio de Janeiro. Claro está que quem já não as utilizava continuou a agir conforme vinha atuando. Vários daqueles, por sua vez, que, devido ao medo ou ao cumprimento das regras, faziam uso da proteção, se viram livres para assumir seus rostos destampados, com aval dos números decrescentes de fatalidades e da autoridade municipal. A cada novo dia, é possível perceber o aumento das faces à mostra em comparação com uns poucos os quais, ainda hoje, mantêm a proteção.
Quem são esses resistentes? Por que agem assim?
Ninguém pode dizer, sem cair no ridículo, que usar máscaras faciais é algo agradável. Depois de tanto tempo, de toda a pressão, angústia e sofrimento, parece óbvio e justificável o desejo de retomar a vida normal, voltar a encontrar gente, abraçar, beijar, passear, comer e beber juntos, praticar esportes, frequentar atividades culturais. Ao haver menos vítimas fatais, a sensação de segurança também cresce e se soma à rejeição às restrições. A conclusão lógica seria: a pandemia está controlada, finda. O pior já passou, estamos protegidos por vacinas e, caso alguém venha a morrer, será porque tinha alguma comorbidade, não se vacinou ou era a sua hora.
Para a maioria das pessoas é provável que o racional seja mesmo esse. Acho, contudo, que nada é tão simples. Em primeiro lugar, há o fato de as vacinas não impedirem a contaminação e consequente propagação do vírus. Ao espalhar-se, sempre existe a chance de surgirem novas cepas, inclusive resistentes aos imunizantes. Também, embora a percepção ao sair às ruas seja a de uma epidemia encerrada, nem todos parecem sentir de tal forma. Não só o medo de se expor persiste em várias pessoas, entre as quais me incluo, como paira um certo desconcerto em relação à retomada do cotidiano conforme era antes de tudo isso começar. Afinal, durante seu auge, a covid se mostrou uma enfermidade traiçoeira, que atingiu pessoas de diferentes idades, sexos, camadas sociais, sem uma aparente lógica para alguns dos casos mais graves (ao menos, segundo leigos). Só para citar um exemplo, tenho um tio, na casa dos 90 anos, fumante, com tumores no cérebro, o qual sequer chegou a ser entubado ao ficar doente, tendo a felicidade de receber alta do hospital sem sequelas. Isso, contra todas as expectativas. Soube, ao contrário, de gente jovem que veio a falecer e outros que continuam sofrendo com as consequências (dificuldades motoras, ou de memória, para citar algumas) geradas pela doença.
Já escutei muita gente comentando sobre como está complicado voltar ao trabalho presencial, outros confessando ser ainda desconfortável usar meios de transporte público. E há, também, quem se sente deslocado em eventos muito frequentados. Algumas práticas adquiridas durante estes dois últimos anos persistem, talvez até sem tanta necessidade: uso do álcool, shields e luvas, cumprimentos a distância, fuga de locais movimentados, em especial se forem fechados. Profissionais da saúde meus conhecidos me afirmam que sentimentos ambíguos a respeito da retomada não são exclusivos de uns quantos. Há vários indivíduos com dificuldade para encontrar seu prumo, por assim dizer.
Voltar a viver com outras pessoas no mundo lá fora é uma necessidade, tanto social quanto física e psicológica. Eventualmente, todos e todas faremos esse percurso de regresso e reconquistaremos nosso lugar. No processo, os mais lentos, cautelosos ou temerosos perderemos algumas atividades e oportunidades. É algo com o que teremos de lidar. Seja como for, cada qual possui seu tempo, um fator a ser respeitado. Mas a pandemia foi real e invadiu nossas vidas de forma intensa. Nada será, a rigor, como antes, pois vivências assim marcam a história pessoal e coletiva. Importa saber, suponho, o que faremos com as memórias e experiências adquiridas e como lidaremos com futuros eventos de natureza semelhante.